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Edição 71 - Abril// de 2015

DEPOIMENTO (págs. 26 a 29)

Por dentro de um CAPSad

Desafiando o improvável

Adriana Rotelli Resende Rapeli*


Dependentes de drogas e álcool devem ser encarados como
doentes crônicos e recidivantes, como os diabéticos e os hipertensos

 

A leitura de um artigo sobre os médicos que atendiam os pacientes com ebola, na África, causou-me, curiosamente, um sentimento de familiaridade. Guardadas as devidas diferenças, reconheci ali as dificuldades do tratamento da dependência química em nosso meio. Entre elas, a exposição que enfrentamos todos os dias, o convívio com a miséria, com a violência doméstica e social, com a deterioração da saúde física e mental de nossos pacientes e com a cronicidade avassaladora dos casos.

Sou parte da equipe do CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial para tratamento de problemas relacionados ao álcool e outras drogas) de Itapira (SP). Temos quase 2 mil registros de casos de dependência, principalmente de álcool, cocaína (do pó inalado ou na forma de pedra de crack), maconha e tabaco. A maior parte dos casos tem múltipla dependência (por exemplo, álcool e tabaco, com ou sem outras drogas, álcool e cocaína, maconha e cocaína).

É o único serviço público de atendimento aos dependentes químicos em nível ambulatorial no município. Embora sejam muitos, os casos que acompanhamos não representam a totalidade, se considerarmos que a média brasileira de dependência de álcool gira em torno de 10% da população. Nesse caso, Itapira teria 7 mil casos. Onde estão e quem está tratando essas pessoas?

Na linguagem dos CAPS, o acolhimento é o primeiro atendimento feito ao dependente químico. Treinamentos contínuos são feitos para a equipe se capacitar emocionalmente para não julgar, não confrontar, não induzir, e tratar digna e compreensivamente a pessoa que acaba de chegar. Inclusive porque é raro que ela chegue espontaneamente. É um ser envergonhado de seus atos ou pressionado pela empresa onde trabalha, ou desempregado, ou ameaçado de abandono pela família (quando ainda a tem), quando não acuados pela Justiça. A equipe que o acolhe se depara com uma barreira de resistências e desconfianças que inauguram o tratamento em situação desfavorável.

Somadas a essas questões, embora seja uma proposta de tratamento ambulatorial, nos deparamos com o imediatismo das solicitações de internação, voluntária, involuntária ou compulsória. Ou é o paciente que, ao se reconhecer com problemas, quer resolvê-lo rapidamente; ou é a família que assim requer, ou até mesmo instituições públicas de saúde, educação ou justiça. Apesar de três décadas de reforma psiquiátrica no Brasil, há, ainda, uma arraigada cultura de institucionalização em ambientes fechados. Em algumas situações – nas quais os riscos à saúde se tornam maiores – ela é necessária, sim. Mas, não podemos esquecer da longevidade dos problemas com os quais lidamos. Eles se arrastam por anos. Ingenuamente, acredita-se que a internação seja a solução. Ela o é durante o tempo em que o paciente estiver internado, se não houver complicações ou fugas. Entramos num labirinto sem saídas.

Se o contato com o paciente sobrevive aos impactos iniciais, confrontamo-nos com a realidade dos casos. Quando chegam até nós, mesmo nos casos de adolescentes, já são muitos anos de envolvimento com a droga ou o álcool. A dependência já existe, com repercussões na saúde, na vida escolar e profissional, e na família. A adesão ao tratamento é pequena. Em todo o mundo, fala-se em um terço deles, independentemente da idade. Dentre os que aderem, mais de dois terços recaem, engrossando o preconceito de que tais tratamentos de nada adiantam. E assim o é se considerarmos o conceito de cura como desaparecimento dos sinais e sintomas que caracterizam a doença.

Na literatura psiquiátrica mais recente há o lembrete cauteloso de que as dependências químicas devam ser encaradas como doenças crônicas e recidivantes como a hipertensão arterial e o diabetes, por exemplo. Entretanto, ao diabético e hipertenso não punimos com a exclusão do tratamento se ele não consegue na maioria absoluta dos casos – modificar seus hábitos alimentares e de vida para melhorar sua condição de saúde. Suportamos a cronicidade como parte de seu problema.

Ao fumante, outro dependente químico, ainda reservamos um certo respeito à sua liberdade, mesmo com as pesadas campanhas e restrições contra o cigarro. Nos serviços de saúde, há reconhecimento dos males do tabaco e, em consultas médicas, o paciente é indagado se fuma. Nem isso os usuários de álcool e outras drogas recebem. Embora haja mais de 200 agravos à saúde provocados por essas substâncias, ainda recebemos poucos encaminhamentos de profissionais da saúde que investigaram o uso delas em uma consulta de rotina, exceto nos casos evidentes, como cirrose hepática ou intoxicações severas de drogas. Há uma espécie de pacto de silêncio.

Em meio ao grosso caldo de preconceitos, as famílias, na maioria dos casos, chegam até nós desesperançadas, esgotadas em seus recursos, quando não esfaceladas em sua estrutura, também adoe­cidas de vários modos. Durante anos ou décadas não buscaram ou não investiram no tratamento e só o fazem quando os problemas ficaram muito explícitos: o desemprego, a amea­ça de prisão ou de morte, as dívidas. O funcionamento das famílias faz parte dos ecos da própria sociedade.

O adolescente de 16 anos começou usando maconha aos 11, traficando drogas aos 12, a cocaína vem um pouco depois, com as noites nas esquinas, no agito das ruas, na fuga da polícia. Rapidamente perde o interesse pela escola e, essa, geralmente facilita a evasão, transferindo ou expulsando o aluno. Quando chegam até nós, já são casos conhecidos da polícia, com passagens pela delegacia ou mesmo pela Fundação Casa. Ocorre que nosso dilema é mais complexo, pois não temos clínicas de tratamento de crianças e adolescentes cadastradas pelo SUS em nossa região. Aliás, são raras em todo o País. Socorremo-nos em clínicas particulares, cuja qualidade de tratamento não conseguimos avaliar.

Sem respaldo de uma rede social mais ativa, os meninos que estão fora da escola, vêm só a consultas, grupos ou oficina, tendo, nas horas livres, apenas a rua como alternativa. As famílias das quais provêm não oferecem muito respaldo, a ausência do pai é quase absoluta, é comum a presença de outros dependentes químicos na casa. Qual a chance de que haja recuperação?

Não podemos ser simplistas, atribuindo a dificuldade apenas à posição social. Se a condição do dependente for melhor, se a família puder lhe oferecer alternativas de estudo e opções de vida, o desafio que nos espera não é menor. Nesse caso, deparamo-nos com a falta de vitalidade, a pobreza da vida mental, a falta de motivação que o uso crônico da droga provoca ou é sua consequência. A soma de fracassos se agiganta, pesa nos ombros da família e da equipe, pois quase nada dá certo para aquele jovem. Acompanhar tais casos vendo uma geração se perder, sem escolaridade, sem perspectivas atrativas de crescimento profissional, é terrivelmente angustiante.

Imaginemos agora aquele adolescente 20 ou 30 anos depois. O que ele construiu de laços familiares, de carreira profissional, de escolaridade, de contribuição social? Sua situação vai nos mostrar uma ficha criminal mais preenchida que a carteira de trabalho? Costumamos dizer que os “casos de CAPS” são justamente desses adultos para os quais nossa tarefa se constitui não uma reabilitação, mas uma tentativa de construção de alguma autonomia, de alguma cidadania, de alguma identidade, até mesmo concretamente: não poucas vezes, as assistentes sociais precisam fazer ou refazer os documentos pessoais, perdidos na longa estrada da doença.

Sim, de uma verdadeira doença psiquiátrica. Porque doença da alma. De almas perdidas ou nunca encontradas. Doença que requer profissionais que se habilitem a trabalhar nessa fronteira da cidade, da sociedade, da saúde mental. Uma equipe de saúde mental composta de profissionais que trazem vértices distintos: psicólogo, psiquiatra, assistente social, terapeuta ocupacional, educador físico, enfermeiro... O trabalho que se mostra à frente é árduo e prolongado. Lutamos com improbabilidades. É preciso valorizar pequenos feitos: a assiduidade é comemorada como vitória, uma participação espontânea – depois de muito investimento – é uma preciosidade. Enfrentamos riscos de endurecimento, de moralização, de preconceitos. De também nos tornarmos crônicos, sem noção do tempo que passamos trabalhando. De desistirmos, de fazermos coro com os que dizem ser um trabalho inútil, “perda de tempo” porque não temos efetividade ou evidências de resultados positivos.

É verdade. Se acompanharmos a dificuldade de adesão e o índice de recaídas, não sobra muito. E as recaídas são frustrações tão grandes quanto maiores forem nossas expectativas de melhora.

Esperaremos, então, milagres? Se assim for, o que nos diferencia de alguém que se torna dependente de uma substância que promove rápidos resultados de satisfação? Faremos um conluio com a ilusão de que “agora vai dar certo”? Porque, ao contrário do ebola, que tem evolução rápida para a morte ou para a remissão do quadro, estamos diante de uma doença que sangra por décadas. Que, considerando todos os fatores que apontamos – contexto sociofamiliar, barreiras a serem vencidas até o tratamento se estabelecer, a cronicidade etc. –, as recaídas são consideradas como parte do processo. São eventos que compõem a extensa linha do tempo, durante a qual se perde e ganha, ganha e perde, continuamente. Precisamos sempre ganhar tempo. A pressa é que torna a espera insuportável, eterna enquanto dura, intransponível. O trabalho de uma equipe de saúde mental precisa sobreviver, tendo a cronicidade como a qualidade do tempo e Cronos como nosso aliado no amadurecimento, na cura do próprio trabalho. Como um bom queijo, um vinho, as melhores propriedades se dão com a espera.
 

*Psiquiatra e psicanalista


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