CAPA
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Bráulio Luna Filho
ENTREVISTA (págs. 4 a 9)
Göran Hansson
CRÔNICA (págs. 10 a 11)
Sady Ribeiro*
EM FOCO (págs. 12 a 15)
Oliver Sacks
DEBATE (págs.16 a 21)
Ética e Bioética
SINTONIA (págs. 22 a 24)
Tudo em excesso é veneno!
CARTAS & NOTAS (pág. 25)
Espaço dos leitores
DEPOIMENTO (págs. 26 a 29)
Por dentro de um CAPSad
GIRAMUNDO (págs. 30 a 31)
Curiosidades da Medicina
PONTO.COM (págs. 32 a 33)
Ciência no mundo digital
HISTÓRIA DA MEDICINA (págs. 34 a 37)
Stefan Cunha Ujvari*
CULTURA (págs. 38 a 42)
Coleção de arte
+CULTURA (págs. 42 a 43)
Galeano & Grass
TURISMO (págs. 44 a 47)
Ouro Preto e Diamantina
FOTOPOESIA (pág. 48)
Eduardo Galeano
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (págs. 4 a 9)
Göran Hansson
O Nobel de Medicina visto de dentro
Professor do Instituto Karolinska, na Suécia, ex-secretário-geral e ex-presidente do comitê de escolha do Nobel em Medicina comenta os critérios da escolha, a decepção de grandes cientistas que não foram laureados, os aspectos éticos e bioéticos, as críticas, as questões de gêneros e outros temas que envolvem o prêmio mais desejado por cientistas do mundo inteiro
Por Concília Ortona*
Sonha em ganhar um Prêmio Nobel? Em entrevista exclusiva à Ser Médico, Göran Hansson, professor emérito do Instituto Karolinska – faculdade de Medicina sueca que coordena a premiação na área médica –, e ex-secretário-geral e ex-presidente do comitê de escolha do Nobel em Fisiologia ou Medicina, diz como isso é possível. “Cientistas brasileiros, como os dos demais países, precisam realizar um bom trabalho; dedicarem-se a problemas importantes em saúde; e manter elevadas exigências de qualidade da pesquisa. Além disso, o governo brasileiro e patrocinadores privados devem vislumbrar ciência como um investimento em longo prazo, e certificar-se de promover um efetivo sistema de revisão por pares, na distribuição de bolsas de pesquisa”, afirma.
Como secretário-geral, entre 2009 e 2014, ele foi a figura mais aguardada por um seleto grupo de jornalistas provenientes dos quatro cantos do planeta, cuja missão é apurar o laureado – ou laureados, pois o prêmio pode ser compartilhado por até três pessoas – com o Nobel de Fisiologia ou Medicina. O felizardo recebe a medalha de ouro com a efígie do sueco Alfred Nobel, inspirador do prêmio e inventor da dinamite; além de um diploma e a quantia de oito milhões de coroas suecas (algo em torno de US$ 1,1 milhão). E o mais importante: terá seu futuro profissional e acadêmico mudado para sempre.
Cabia a Hansson, também, telefonar, minutos antes da divulgação, aos próprios escolhidos. Tudo de forma rápida e objetiva, já que o Nobel de Medicina abre a série de anúncios dos contemplados em Economia, Física, Química, Literatura e Paz. Antes disso, entre 2004 e 2006, o sueco foi presidente do mesmo comitê, lidando com os egos de 50 outros professores componentes da Assembleia do Nobel, “que, constantemente, têm opiniões fortes”, revela. O grupo, acrescenta o médico, inicialmente “jamais concorda”, mas é frequente chegar-se ao consenso “ao avaliar, em profundidade” os candidatos pré-escolhidos. As discussões e documentos relativos à escolha do Nobel na categoria são mantidos em sigilo por longos 50 anos.
Hansson, que deixou o cargo em janeiro deste ano para assumir a secretaria da Real Academia Sueca de Ciências, trabalha também como chefe do Departamento de Pesquisa Cardiovascular no Hospital Universitário Karolinska, na Suécia, e no Centro de Medicina Molecular da mesma universidade. Sua área de atenção são os mecanismos imunitários e inflamatórios da aterosclerose, pela qual ganhou vários prêmios, como o da American Heart Association e o da International Society of Atherosclerosis.
Ser Médico – Qual é o trabalho do presidente do comitê que escolhe o Nobel de Fisiologia e Medicina? E o do secretário-geral?
Göran Hansson – É o presidente quem lidera as reuniões do Comitê de Escolha do Nobel, em assembleia geral no Instituto Karolinska. É eleito por período de um ano, podendo permanecer no cargo, no máximo, durante três anos. Já o secretário é responsável pela organização dos trabalhos e o porta-voz do grupo que escolhe o Nobel. É eleito por três anos, mas seu mandato pode ser prorrogado por até 12 anos, cabendo a ele fazer os contatos com os premiados ao Nobel – inclusive, dar a notícia aos laureados –, e com a imprensa, consultores e outras partes da organização do prêmio.
SM – Quais são os pré-requisitos para a nomeação e escolha dos laureados? É preciso ser um gênio da pesquisa para candidatar-se?
GH – Para ser um sério candidato ao Nobel de Fisiologia ou Medicina o pesquisador deve ter feito uma importante descoberta. É realmente o único critério. Nem liderança em universidade, nem publicações em periódicos de alto impacto, contam na escolha. O Comitê considera apenas importantes descobertas. Outra regra essencial: a pessoa não pode se autocandidatar ao Nobel, pois tal escolha nem será considerada. Tudo começa quando o Comitê convida membros de academias científicas de todo o mundo, professores universitários, e pessoas já laureadas, a nomearem pesquisadores promissores. Ou seja, adotamos como princípio solicitar à comunidade científica internacional que aponte os candidatos, ao invés de organizações, já que descobertas científicas são méritos individuais, não de instituições poderosas. Apenas para dar uma ideia da nossa dificuldade de escolha, em 2014 foram 380 indicações.
SM – É possível citar casos em que boa parte dos votantes saiu decepcionada?
GH – Sempre há opiniões fortes, durante as discussões. Mas após todos os candidatos serem avaliados de maneira extremamente cuidadosa e minuciosa, muitas vezes conseguimos chegar ao consenso. Não posso discutir casos envolvendo decisões tomadas durante meu período de participação no Comitê porque, conforme estatuto, nossos arquivos são mantidos em segredo por 50 anos. No entanto, há livros que falam sobre prêmios controversos. Um exemplo conhecido é o Prêmio de 1923 aos canadenses Frederick Banting e John Macleod,1 pela descoberta da insulina. Ambos sentiram que outros mereciam parte dos méritos, o que levou Banting a dividir sua parte do prêmio com Charles Best, e Macleod, com seu colaborador, James Bertram Collip.
Frederick Banting e John Macleod, laureados em 1923
em meio a controvérsias
SM – Como outras profissões, a médica, especialmente em pesquisa, sempre envolveu muitos egos e vaidades. É comum nas decisões da Assembleia do Nobel e no Comitê que os votantes considerem sua própria área de atuação mais importante do que as demais?
GH – Os cientistas são seres humanos. Nossa perspectiva é moldada a partir de nós mesmos e de nossas próprias atividades. Portanto é notável que esse viés consiga ser posto de lado na escolha para o Nobel. Apenas o mérito científico conta. Seria mesmo considerado de mau gosto entre nossos pares argumentar para a concessão do prêmio ao nosso próprio campo.
SM – No decorrer da escolha do Nobel de Medicina, os aspectos éticos e bioéticos das descobertas merecem a mesma relevância quanto os técnicos e científicos?
GH – Os prêmios Nobel são concedidos pelas descobertas científicas que mudaram paradigmas, e aumentaram nossa compreensão e nossas oportunidades de prevenir ou tratar doenças. Em geral, as técnicas não são consideradas, com exceção daquelas capazes de revolucionar a Medicina, como Ressonância Magnética por Imagem e Fertilização e Fertilização In Vitro (siglas em inglês, MRI e FIV, respectivamente). Raramente pesquisas antiéticas conseguem levar a descobertas importantes. Além disso, a ética da pesquisa é apreciada com cuidado por comitês de ética, antes do início dos estudos. As análises e a ética dependem do momento histórico em que ocorrem, tornando as consequências de uma descoberta impossíveis de se prever. Por exemplo, pode-se argumentar que a bomba atômica foi construída com base em descobertas anteriores – premiadas com o Nobel – como a de Albert Einstein (em 1921, em Física, “pela explicação do efeito fotoelétrico”) e Otto Hahn (em 1944, em Química, “pela descoberta da fissão de núcleos pesados”). Não deixaram de ser prêmios éticos, apesar dos resultados. O conhecimento é um benefício à humanidade e teria sido muito errado não reconhecer a revolução na física anunciada por Einstein. Dois Prêmios Nobel em Fisiologia ou Medicina costumam ser criticados: o de 1926, concedido ao pesquisador dinamarquês Johannes Fibiger, sobre vermes “causadores” de câncer (teoria observada em ratos); e o de 1949, ao neurologista português Antônio Egas Moniz, pelo emprego da lobotomia. No primeiro caso, a descoberta nunca pôde ser confirmada por outros pesquisadores, e acabou por demonstrar-se incorreta. A lobotomia foi abandonada, pelos efeitos colaterais graves, porém, não compreendidos à época da concessão. Ao contrário, parecia um grande passo no tratamento da esquizofrenia. Poucos anos mais tarde foram desenvolvidos os neurolépticos, constituindo-se, esses sim, em uma verdadeira mudança de paradigma na psiquiatria. Os dois casos ensinaram ao Comitê do Nobel a ir mais devagar e aguardar a confirmação do feito, antes de dar o prêmio. A cautela é criticada, mas, cremos, justificada.
SM – No decorrer da história, qual foi o Nobel mais conhecido em Medicina?
GH – Provavelmente o concedido em 1945 a Fleming, Chain e Florey pela descoberta da penicilina. Curioso é que Alexander Fleming descobriu que um fungo teria efeito bactericida, chegando à penicilina, em 1923. Mas apenas em 1940, Howard Florey e Ernst Chain, da Universidade de Oxford, obtiveram a substância purificada.
Anexo moderno do Instituto Karolinska, em Estocolmo
SM – Em uma entrevista anterior, o senhor disse que, na fase contemporânea do Nobel, as áreas mais valorizadas direcionam seus estudos ao “DNA e à biologia molecular”. Ambas motivam muitos dilemas éticos e bioéticos. De que forma o Comitê lida com divergências religiosas e políticas?
GH – Mudanças de paradigma em ciência podem tornar necessárias reavaliações políticas, bem como de dogmas religiosos. Às vezes, tais dogmas podem ser manejados de forma tranquila pela comunidade científica. Bom exemplo disso foi a avaliação dos riscos com a tecnologia de DNA híbrido, em 1975, durante conferência em Asilomar, em Pacific Grove, na Califórnia. Na ocasião, foram retomados os estudos científicos sobre manipulação genética, após moratória decidida por um grupo de cientistas, em 1974. Esse período de interrupção foi fundamental e histórico, pois permitiu aos biólogos moleculares identificarem os riscos potenciais associados às tecnologias, avaliando-os e definindo regras para manipular o material. Tais normas foram inestimáveis e permitiram o uso da tecnologia do DNA híbrido de uma forma completamente segura em muitas áreas, inclusive em Medicina. Por outro lado, há exemplos tristes envolvendo religião, regimes autoritários e ciência. O julgamento de Galileu Galilei pela igreja católica, e a proclamação, pelo regime soviético, de que as teorias mirabolantes de Lysenko2 representavam “a versão correta” da genética, são os mais famosos. Ambos causaram efeitos prejudiciais à ciência e à sociedade. Os cidadãos têm o direito a informações relativas à ciência, e seus representantes nos governos e parlamentos, o dever de legislar. Mas as decisões sempre devem se basear em conhecimentos validados, não em preconceito.
SM – Seria impossível recompensar todos os médicos-pesquisadores talentosos e brilhantes, devido à velocidade do desenvolvimento do conhecimento científico. Há alguma descoberta que o senhor e o comitê concluem que poderia ter sido escolhida para o Nobel?
GH – Sim, absolutamente. Foi esse o tipo de pensamento que tivemos ao lermos, em publicações científicas, as descobertas dos receptores da imunidade inata, que trouxeram novas compreensões sobre o funcionamento do sistema de defesa do corpo humano. Foram publicadas na década de 1990, mas laureadas em 2011; e em relação à indução de células-tronco pluripotentes, divulgada em 2006, mas premiada em 2012.
SM – Em entrevista à Ser Médico,o virologista Robert Gallo 3 admitiu ter ficado “aborrecido e surpreso” por não ter recebido o Nobel 2008, juntamente com os outros descobridores do vírus HIV. Como costuma ser a reação do grupo de escolha, ao defrontar-se com críticas de não laureados?
GH – Ficar chateado por não ser agraciado com um Nobel é uma reação muito humana. Entendemos esses cientistas. No entanto, nossas decisões surgem de avaliações muito cuidadosas, tanto dentro Comitê Nobel quanto por nossos especialistas em todo o mundo. Sentimos um forte apoio da comunidade científica internacional quanto à integridade da avaliação. Em relação a Gallo, revisamos nosso próprio trabalho com muito cuidado, mas decidimos não mudar a decisão motivados por discussões na mídia. Além disso, nosso estatuto social nos impede de trazer à tona avaliações, atas e relatórios em que as nossas decisões são tomadas.
Em quatro páginas de papel amarelado e escrita densa, com anotações em todos os lados, o testamento do sueco Alfred Nobel (1833-1896), assinado em 27 de novembro de 1895, em Paris, foi o responsável pela criação do Prêmio Nobel, a partir de 1901. Nele o inventor da dinamite e de outras 350 patentes, químico e industrial estabeleceu que parte de sua fortuna fosse destinada à criação de um fundo que premiaria aqueles que "no ano anterior, foram responsáveis pelos maiores benefícios à humanidade".
SM – Em entrevista bem-humorada, a então já quase octogenária neurologista italiana Rita Levi-Montalcini, Nobel de Medicina em 1986, afirmou: “não é que existam poucas mulheres cientistas; a realidade é que vários descobrimentos científicos atribuídos a homens foram feitos por suas irmãs, esposas e filhas”. Por que, em mais de cem anos do prêmio, apenas 11 mulheres foram laureadas?
GH – É uma pena que as mulheres não contavam com igualdade de oportunidades para estudar, fazer carreiras em ciência e outros campos, e de receber o crédito por suas próprias descobertas. Na primeira metade do século 20, poucas mulheres tiveram a chance de seguir uma carreira científica e apenas na década de 60 e 70 se iniciou algum equilíbrio de gênero nas universidades e laboratórios de pesquisa. De 1901 a 1950, apenas uma mulher, Gerty Cori, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina. De 1950 a 2000, mais cinco foram adjudicadas. Felizmente, os tempos estão mudando, chegando-se a um equilíbrio razoável entre gêneros em muitos países, embora não em todos. A melhoria de oportunidades às mulheres reflete-se, sim, nas estatísticas do Prêmio Nobel, reconhecendo que muitas descobertas importantes são feitas pelo sexo feminino. É uma mudança notável e sem quaisquer cotas por gênero.
SM – Na história do Nobel, a maioria dos vencedores é dos Estados Unidos – ou naturalizados norte-americanos – e de europeus ocidentais. Por que a primazia na investigação está nas mãos de cientistas dessas procedências?
GH – A Europa Ocidental possui a mais longa – e bem-sucedida – tradição e trajetória em ciência no mundo. Já os EUA, na era pós-guerra, investem mais em ciência do que qualquer outro país ou região e seu “time” foi reforçado pela chegada de muitos refugiados, cientistas e outros, que fugiram da perseguição e da guerra.
O auditório aguarda a família real sueca e os laureados do Nobel
SM – Para finalizar, como incentivaria pesquisadores médicos brasileiros a pensar no Nobel? Diferenças de linguagem são impedimentos?
GH – Não considero a língua um impedimento em ciência, uma vez que publicamos nossos estudos em inglês. Cientistas brasileiros, como os dos demais países, precisam realizar um bom trabalho; dedicarem-se a problemas importantes em saúde; e manter as elevadas exigências de qualidade da pesquisa. Além disso, o governo brasileiro e patrocinadores privados devem vislumbrar a ciência como um investimento em longo prazo, e certificar-se de promover um efetivo sistema de revisão por pares, na distribuição das bolsas de pesquisa.
NOTAS
1. Segundo historiadores, Banting claramente merecia o prêmio, mas a escolha de Macleod foi controversa. O primeiro chegou a se recusar a receber o prêmio ao lado do segundo, alegando que seu colaborador havia sido Charles Best. Mais tarde, tornou-se conhecida a história de que o romeno Nicolae Paulescu estava trabalhando em diabetes desde 1916, e que pode ter isolado a insulina – chamada por ele como “pancreatina” – um ano antes dos canadenses.
2. Apadrinhado por Stalin, o agrônomo russo Trofim Lysenko decretou, em resumo, “a falsidade da genética”.
3. https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=738
*Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)