CAPA
EDITORIAL (pág. 1)
Renato Azevedo Júnior - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Edmund Pellegrino, do Kennedy Institute of Ethics
SAÚDE NO MUNDO (pág. 9)
E U R O P A
CRÔNICA (pág. 12)
Cássio Ruas de Moraes*
SINTONIA (pág. 14)
Alexandrina Meleiro*
DEBATE (pág. 18)
A atuação de recém-formados em regiões distantes do país
SUSTENTABILIDADE (pág. 24)
O descarte e a reutilização de materiais
HISTÓRIA DA MEDICINA (pág. 27)
Por Renato M.E. Sabbatini*
GIRAMUNDO (págs. 30/31)
Curiosidades da ciência e tecnologia, da história e da atualidade
PONTO COM (págs. 32/33)
Acompanhe as novidades que agitam o mundo digital
HOBBY (pág. 34)
Valdir Lopes de Figueiredo
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 37)
O Conto da Ilha Desconhecida - André Scatigno*
CULTURA (pág. 38)
INHOTIM - Todos os sentidos da arte
CARTAS & NOTAS (pág. 43)
Comentários, Fontes e Referências Bibliográficas
TURISMO (pág. 44)
Na Garupa de um Motociclista...
FOTOPOESIA( pág. 48)
Sophia de Mello Breyner Andresen
GALERIA DE FOTOS
DEBATE (pág. 18)
A atuação de recém-formados em regiões distantes do país
Polêmica à vista: serviço civil para médicos
Recém-formados em Medicina estão aptos a atender sozinhos comunidades de áreas remotas, com supervisão por meio do Telessaúde?
O projeto, chamado de Serviço Civil para Médicos, está em estudo no Ministério
da Saúde e será debatido com as entidades médicas e representantes de municípios e Estados. Prevê o envio de recém-formados a povoados e cidades, principalmente da região amazônica e do sertão nordestino, onde há falta crônica de médicos.
Mesmo formados, os egressos estão capacitados a dar assistência adequada àquelas populações? Como fica o curso de Residência? É uma alternativa para melhorar a distribuição de médicos em nosso país? Para debater essas e outras questões que envolvem o polêmico tema, a Ser Médico promoveu um debate entre o diretor do Departamento de Gestão da Educação em Saúde do Ministério da Saúde, o clínico geral Sigisfredo Luis Brenelli, e o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e ex-presidente do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), o clínico geral Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, com mediação da conselheira do Cremesp, a ginecologista-obstetra Silvana Maria Figueiredo Morandini.
Morandini: O Ministério da Saúde está estudando a criação de um serviço civil obrigatório ou voluntário para médico, como alternativa para a fixação desses profissionais em áreas de difícil acesso. Dr. Brenelli, poderia nos explicar esse projeto?
Brenelli: O ministério está estudando um serviço civil para médicos, em princípio com voluntários, como forma de provimento e fixação desses profissionais em áreas de difícil acesso. A meta é melhorar a acessibilidade ao Sistema de Saúde, com humanização. A má distribuição de médicos é um fenômeno mundial e deve ser combatido por diferentes processos. O serviço civil não resolveria tudo, mas é importante e necessário. Tem sido demandado pela sociedade civil na forma de vários projetos de lei em curso na Câmara e no Senado. Muitos países têm algo similar. Ele pode motivar uma melhor distribuição desses profissionais, e acredito que deva ser voluntário por uma série de fatores. Por exemplo, em 2011 teremos 13.800 recém-formados em Medicina e, seguramente, não teríamos condições de alocar todos em regiões distantes, nas condições que pretendemos. Sendo voluntário, podemos fazer um projeto-piloto e acompanhá-lo de perto. Teremos candidatos para tal, conforme mostrou uma pesquisa que fizemos com dois mil internos este ano.
Para nós, do ministério, o serviço civil pode ser pedagógico, uma forma de inclusão e de se conhecer a realidade nacional. Para resolver a questão da distribuição, está comprovado, nas literaturas nacional e internacional, que a Residência Médica é o método mais efetivo. E, nesse sentido, temos vários projetos como o Pró-Residência. Outras formas de provimento já estão sendo viabilizadas, como a portaria do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), que reduz o empréstimo feito a estudantes de Medicina, se trabalharem em áreas prioritárias.
Morandini: Quais outros incentivos serão oferecidos para atrair o médico ao serviço voluntário?
Brenelli: A pesquisa mostrou que eles querem, em primeiro lugar, salário. Em segundo, a garantia de ter a vaga assegurada caso tenham passado em algum exame de Residência, a exemplo de como é feito no Exército. Desejam também que o serviço civil conte pontos para esse exame, se ainda não tiverem passado em algum. Como é uma experiência interessante e importante, um aprendizado, estamos pensando em oferecer uma pontuação a mais para o exame de Residência, desde que o recém-formado tenha uma supervisão em seu trabalho, pois sabemos que os seis anos de faculdade não são suficientes para lhe dar segurança. Já fizemos os primeiros contatos com a Comissão Nacional de Residência Medica, porque é ela quem decide essa questão.
Vital: Este assunto é de extrema relevância aos nossos interesses sociais. Contudo, precisa ser discutido e analisado de forma mais vertical, no amplo contexto social, cultural, econômico e de formação profissional. Prover e fixar profissionais requer estratégias regulatórias educacionais, financeiras e de apoio técnico e profissional, ou seja, são muitos os fatores que estão envolvidos nesse processo. Precisamos discutir, por exemplo, o orçamento destinado à Saúde no país e a formação profissional. Sabemos que o número de escolas médicas brasileiras é extremamente elevado e, por isso, é preciso determinar, de maneira clara, qual é a necessidade de médicos por habitante no país. É preciso dar, realmente, prioridade à educação e à saúde. É fundamental que a formação de especialistas e a fixação de profissionais de saúde sejam baseadas nas necessidades reais de saúde do Brasil e não em supostas. Isso nunca foi feito. Até hoje, fica a cargo da lei da oferta e da procura a determinação da quantidade de vagas em determinada especialidade, quando isso deveria ser tarefa do governo.
Mas, todo esse processo demanda estímulos para preceptores, formadores, docentes e médicos, como boas condições de trabalho e, obviamente, de remuneração. É preciso que haja segurança e garantias de trabalho, seleção a partir de concurso público e carreira de Estado para os médicos. São fatores que, se efetivados, certamente vão deixar claro que o nosso problema não é a falta de médico, mas sua distribuição no país.
Brenelli: Concordo com o professor quando ele fala que o Estado tem de regular a formação do especialista por meio da Residência. O mundo inteiro faz isso. Na Espanha, o governo tem controle quase total da formação especializada, assim como o Canadá, França, Peru e Venezuela. Há dois anos, o Ministério da Saúde está tentando resolver esse problema. Ele paga, atualmente, duas mil novas vagas de Residência em especialidades de maior necessidade da população, conforme uma grande pesquisa feita para detectar onde e qual especialidade formar. Esse projeto faz parte de uma política dos dois ministérios, da Saúde e da Educação, e deve ser ampliado de forma que, no ano de 2022, possamos oferecer vagas de Residência para, praticamente, todos os recém-formados.
Vital, Morandini e Brenelli debatem os prós e os contras do serviço civil para médicos
Morandini: Aquelas comunidades não mereciam também a oportunidade de ser atendidas por especialistas?
Brenelli: O recém-formado tem CRM, portanto o CFM o reconhece como médico. Ele deve ter tido, na graduação, conteúdo mínimo para lidar com as atenções básica e secundária, e saber encaminhar para a terciária. Mesmo porque, há vagas para Residência apenas para a metade dos formandos, e os demais, que não passam nos exames, estão por aí trabalhando. Vamos formar, este ano, quase 14 mil médicos e temos seis mil vagas de Residência! Então, teoricamente, o recém-formado está apto a participar do serviço civil.
A ideia é ele ir para um lugar que tenha sido negociado com o gestor municipal, pois ele terá um salário. Será um local onde devem existir outros membros de equipes de saúde da família, e o recém-formado terá supervisão – provavelmente da instituição que o formou ou de uma universidade local, pois haverá um ponto do Telessaúde. O projeto não será discutido apenas no ministério, queremos a participação das entidades médicas, das universidades, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Vital: Reafirmo, com convicção, que existe uma disponibilidade de médicos no país e uma distribuição inadequada. Isso é consensual. Só nas regiões Sul e Sudeste estão concentrados 72% dos médicos. O número de escolas em nosso país é o maior do mundo. E esse número cresce, fundamentalmente, no setor privado, em decorrência de pressões políticas. Por outro lado, como foi bem dito, sabemos que o egresso tem deficiências. Inúmeras escolas sequer têm hospital, próprio ou conveniado, de acordo com o que é exigido por lei. Como pode esse egresso assumir responsabilidades de caráter pessoal intransferíveis, éticas, civis e criminais, e oferecer uma assistência adequada ao paciente, se não está formado de maneira compatível? Coloco aspas nesse “voluntário” porque haverá estímulo por pontuações para Residência. Aliás, ultrapassa o campo do estímulo e chega ao da vinculação.
Outra questão fundamental e temerária é que as populações das comunidades atendidas pelo serviço civil serão tratadas de forma menos qualificada, justamente aquelas pessoas que precisam mais da assistência à saúde e, por isso, são mais vulneráveis. É um paradoxo. A experiência internacional mostra que carreiras profissionais e Residência Médica são os principais fatores de fixação de médicos em áreas remotas. Acho pouco resolutiva a supervisão de um recém-formado por meio de telemedicina. Nós sabemos que a medicina tem caráter presencial. Foi visto que, para fixar o médico em uma comunidade, o salário é importante, mas não suficiente. Além dele, é preciso condições de trabalho e, daí, voltamos à questão orçamentária, pois só com ela podemos ter centros eficientes de referência e contrarreferência, num país continental como o nosso. É preciso, por exemplo, que se regule, ao menos, a Emenda Constitucional 29. De forma que não penso que colocar o egresso de Medicina em um serviço civil, nas circunstâncias em que ele é formado, seja a solução. Isso é uma péssima assistência. E entre a desassistência e a péssima assistência, eu não faria opção por nenhum dos lados. É necessário dar estímulos, como a carreira de Estado.
Gravatá, região da zona da Mata de Pernambuco, seria considerada também área de difícil acesso
Brenelli: Alguns dados devem ser analisados com lupa. Volto a insistir: a maioria dos médicos recém-formados que não faz Residência está certificada para fazer o que quiser e trabalha por aí. Ou seja, o serviço civil não estaria sendo irresponsável. Aliás, ajudaria o recém-formado com alguma supervisão. A Residência é cara, é o padrão-ouro da especialização, mas, como eu já disse, pela primeira vez no país, temos um projeto de oferecê-la para todos os formandos.
Quanto às escolas médicas abertas nos últimos três anos, oito das nove são públicas, e foram autorizadas com todos os critérios necessários, com o aval do Conselho Nacional de Saúde, incluindo a inserção no sistema de saúde local. Pela primeira vez, também, a avaliação dos alunos de medicina começou a ocorrer em um nível que provocou o fechamento de mais de 800 vagas em escolas médicas, porque não atingiram o padrão exigido. Outras escolas foram abertas sem critério algum, como em Minas Gerais e em Tocantins, usando a legislação estadual para criar instituição privada como se fosse pública e estadual, e, por isso, não estão sob o controle do Governo Federal.
Vital: Obviamente, o preparo de um médico requer não só conhecimentos cognitivos, mas, também, habilidades e competências. O egresso não obtém isso, em plenitude, em seis anos. É inviável. É preciso estimular programas como, por exemplo, o Pró-Residência (N.R.: programa do MEC e do MS de apoio à formação de médicos especialistas em áreas estratégicas para o SUS, criado em 2009), muito bom e bonito como o SUS. Mas falta vontade política para sua implementação adequada. O Pró-Residência foi concebido sobretudo para as áreas com menos oferta de Residência Médica. Mas nós sabemos que, desde sua criação, o maior número de pedidos à Comissão de Residência Médica foram feitos nas regiões Sul e Sudeste, onde já existem muitos desses cursos.
Brenelli: Não podemos ter o preconceito de achar que o Ministério da Saúde está pensando só no serviço civil para resolver esse problema. Quanto ao Pró-Residência, realmente permitiu vagas para o Sul e o Sudeste porque havia necessidade, por exemplo, de neonatologistas e psiquiatras. Mas esse programa está começando a mudar o mapa da questão das Residências no Brasil. Em Tocantins não havia nenhuma Residência, hoje existem várias. O Estado do Pará, do tamanho da Península Ibérica, formava um psiquiatra por ano. No Amazonas não havia Residência em psiquiatria. Talvez a primeira fase do programa tenha sido mas fácil. A segunda é a de matriciar e criar as condições que a Comissão Nacional de Residência exige para os cursos. Temos de fazer muita coisa, a sociedade está cobrando.
Vital: O que se está tentando fazer agora é resolver, num estalo de dedos, como um passe de mágica, aquilo que demanda solução de processo. Não é um curativo, um esparadrapo, que vai resolver o problema. E essa solução não é uma missão da classe médica e sim do gestor, que nunca fez e que agora terá de agir. Lembro-me de uma época, que não é de muito tempo atrás, quando não existia carreira de Justiça e havia uma carência imensa de juízes em regiões remotas do Brasil. A distribuição desses profissionais só ocorreu naquelas regiões quando a Justiça passou a ser uma carreira de Estado. A mesma situação aconteceu com a carreira fazendária e a de segurança nacional. Ou seja, é preciso que o governo entenda que há necessidade de dar condições de trabalho, garantias trabalhistas, promoção desses recursos humanos, juntamente com condições naturalmente suficientes para um trabalho eficaz. E, ainda, que possibilite ao médico as atualizações indispensáveis no avassalador progresso da técnica e da ciência.
Brenelli: A questão da carreira de Estado é um assunto complexo, algo que teremos de enfrentar. A Bahia está criando um plano de carreira, apesar de alguma dificuldade pela falta de médicos. Pernambuco também. Há muita coisa acontecendo, sem dúvida estamos mudando, embora não seja fácil.
Vital: Não se pode ficar esperando que os profissionais se formem por si sós, não podemos esperar por um pedido de Residência na região Nordeste. O governo precisa ir lá e implementar essa formação. Não se pode ficar passivamente aguardando solicitação de vagas, tem de ir lá e montar. Esse é o Pró-Residência das nossas necessidades. Além de vontade política e de investimentos, precisamos de um pouco de paciência, porque as falhas de décadas não são corrigidas em meses.
Brenelli: Não acho que as 185 escolas médicas sejam tão irresponsáveis, porque elas estão formando, há 200 anos, a maioria de médicos sem Residência, que ajudou a medicina brasileira a atingir o patamar no qual ela se encontra. Então isso não é obstáculo para que voluntários possam viver essa experiência do serviço civil, um ato de cidadania, de justiça social, de inclusão. E, como já disse, eles terão supervisão, ao contrário de caírem no mercado de trabalho sem ela, já que possuem CRM.
Vital: Eles têm CRM porque estão capacitados na forma da lei, mas quando vão trabalhar, principalmente em áreas urbanas ou periféricas de grandes cidades, contam com auxílio e múltiplas supervisões. É diferente enviar esse jovem para uma área carente e remota, onde ele ficará absolutamente só, tendo de assumir responsabilidades insustentáveis. A oferta da assistência é importante, mas tem de estar associada à qualidade indispensável ao cuidado da saúde.
Morandini: Agradeço aos dois debatedores pelos esclarecimentos sobre esse importante tema, e vamos lutar por uma saúde cada vez melhor para todos os brasileiros.