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CAPA

PONTO DE PARTIDA
Entre os temas desta edição, detaca-se um debate sobre alimentos transgênicos


ENTREVISTA
Norman Gall: "O Brasil tolera muito a bagunça nas instituições públicas"


CRÔNICA
Uso subcutâneo, intramuscular, tópico...


BIOÉTICA
Medicina Fetal - Muito além do binômio


SINTONIA
Ressonância: Prêmio Nobel Magnetizado


DEBATE
Alimentos Transgênicos


450 anos de São Paulo
Pelas Ruas da Cidade


CONJUNTURA
Crianças trabalhadoras. Adultos desempregados


COM A PALAVRA
Duas Guerras


HISTÓRIA DA MEDICINA
O Código Sanitário de 1918 e a Gripe Espanhola


MÉDICO EM FOCO
Navegar é preciso


LIVRO DE CABECEIRA
Proust não é tempo perdido


CARTAS E NOTAS
Dr. Manoel (Dias) de Abreu e Dr. (Manoel de Abreu) Campanario


POESIA
Carlos Drumond de Andrade


GALERIA DE FOTOS


Edição 26 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2004

BIOÉTICA

Medicina Fetal - Muito além do binômio

O chefe da disciplina de Medicina Fetal da Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP), Antonio Fernandes Moron, recebeu a equipe da Ser Médico, para falar da cirurgia para o tratamento da mielomeningocele intra-útero, desenvolvida em caráter experimental pelo Hospital São Paulo. Foi o ponto de partida para discutir os aspectos éticos da Medicina Fetal, que envolvem o diagnóstico e o tratamento do binômio mãe-filho, a relação médico-médico e a condução dos casos de anomalias fetais. a entrevista foi conduzida pelo conselheiro do Cremesp e professor de Bioética da FMUSP, Reinaldo Ayer de Oliveira.


SER MÉDICO. Como foi o processo de evolução da obstetrícia para chegarmos à Medicina Fetal?
MORON.
No princípio, a obstetrícia esteve centrada na assistência ao parto. A assistência pré-natal, instituída no começo do século XX, foi sistematizada com o objetivo de reduzir os riscos do parto, tanto para a mãe como o bebê. Por volta dos anos 50 ou 60, a morte materna já tinha sido mais ou menos controlada, pois já existiam antibióticos e o banco de sangue. O parto hospitalar, com o obstetra para cuidar da mãe e o pediatra, da criança, protegia ambos. Isso resolvido, a preocupação voltou-se para o feto.

SER. Quando começou essa transição?
MORON.
O conceito de morte pré-natal apareceu na década de 60 e o aforismo, "salvem a mãe, não importa a criança", ficou diferente. Com a detecção da incompatibidade sangüínea entre mãe e feto, pelo RH negativo, surgem as primeiras tentativas de tratar o feto dentro do útero. A perinatologia, consistia em ações para proteger a mãe e a criança um pouco antes, durante e logo após o parto. Na década de 70, a grande tônica passou a ser garantir as condições de maturidade do feto. A prematuridade era e ainda é um problema sério, com várias conseqüências, entre elas o maior risco de morte. Nos anos 80, surgiu o estudo do cariótipo fetal, que possibilitou fazer o mapa cromossômico e detectar síndromes genéticas, malformações, problemas cardíacos ou cerebrais. Paralelamente, o ultra-som estava sendo aprimorado. O ultra-som começou a ser usado na ginecologia-obstetrícia em 1958, mas as imagens eram péssimas. Nos anos 80, ele entrou realmente na rotina obstétrica, tornando-se uma ferramenta poderosa que permitiu acompanhar todo o desenvolvimento do feto. Hoje temos marcadores importantes, com capacidade para identificar 85% das malformações.

SER. Como é o seu trabalho de interação com o ginecologista que encaminha a paciente? Há conflitos na relação médico-médico?
MORON.
Independente da especialidade, o anestesista, ultra-sonografista ou radiologista é sempre médico do paciente e não do médico que o encaminhou. O médico fetal está inserido no contexto da assistência obstétrica e trabalha junto com o obstetra, com respeito profissional um pelo outro.

SER. Frente a uma malformação, qual é a sua atitude em relação ao feto, à gestante e ao médico?
MORON.
No momento em que exercito meu ato médico, tenho de ser responsável por ele. Se alguém me procura para uma consulta, estou sendo médico daquela paciente. Não posso omitir uma informação, porque o dr. fulano prefere ser o primeiro a saber. Não estaria atendendo a minha vocação de médico. Claro que é preciso ter cautela: tem pessoas que gostam de ouvir de forma clara, outras são mais sensíveis. É sempre bom ter o esposo ou um parente próximo junto. Depois de transmitir à paciente, em seguida, telefono para o médico e explico a situação. Em geral, essa relação com o colega é boa.

SER. Depois de comunicar a doença ou a malformação, como se decide o que fazer?
MORON.
Aí entra uma pergunta conceitual: quando o feto deve ser considerado paciente e ter autonomia? O assunto é muito discutido filosoficamente, mas não há consenso.

SER. E qual é o seu conceito?
MORON.
Com base no conceito do professor Chervenack, maior estudioso em Bioética de Medicina Fetal, a partir do momento em que o feto se torna viável. Esse conceito difere de local para local e também de hospital para hospital de uma mesma localidade, porque depende das condições do serviço. A viabilidade considera que pelo menos 50% das crianças sobrevivam, a idade gestacional e o peso. Nos Estados Unidos já chegaram ao consenso de 25 semanas ou 500gr. No Hospital Santa Joana e na EPM é de 750gr ou 26 semanas. Em uma malformação importante, com possibilidade de tratamento pós-natal, fazemos um paliativo. Por exemplo, se encontrar uma obstrução da uretra que impede a saída da urina, o feto perderá os rins se não for tratado. Posso colocar uma válvula dentro de sua bexiga. Dessa forma, protejo seus órgãos vitais, até que a criança nasça e possa ser operada. Outra consideração importante da viabilidade fetal é se ele tem capacidade de vida independente, se terá autonomia depois de vir à vida, segundo orientação, não só dele, mas de várias pessoas. Mas em qualquer momento a mãe tem direito de conferir status de paciente ao seu filho. Posso dizer "seu filho tem uma malformação letal". No meu conceito não é um paciente, mas se a mãe disser "quero que o senhor trate meu filho como paciente", sou obrigado a considerá-lo como tal. Isso é muito importante.

SER. E levar a gravidez até o fim, por exemplo?
MORON.
Tivemos um caso de Trissomia 18, feto com cardiopatia grave e estávamos sob a pressão de reduzir os índices de cesárea. Discutimos o caso e a resolução obstétrica foi por parto normal com indução, mas nessa situação, era provável que a criança nascesse morta. A mãe não aceitou essa conduta e disse: "quero ter contato com o meu filho, quero segurá-lo no braço vivo". A psicóloga conversou conosco, com a direção clínica e consideramos o desejo da mãe, apesar do aumento no número de cesáreas. A mãe é soberana. Foi bacana, porque a mãe pegou a criança no colo. Uma hora depois o bebê morreu, mas a mãe saiu inteira do hospital e sentindo-se respeitada.

SER. Em situações como as de malformações letais, o sr. considera que está interrompendo uma gravidez ou induzindo um parto?
MORON.
Tem certas malformações que acarretam riscos para a mãe. Um anencéfalo pode causar uma hemorragia pós-parto, pode lesar ou levar a mãe a óbito. Se a mulher não interromper a gestação de um anencéfalo aos quatro meses, lá na frente pode ter uma grave complicação. Em casos de malformação, o médico tem de verificar como vai ser a resolução obstétrica do feto.

SER. E quando a mãe não quer interromper a gravidez?
MORON.
Os juízes têm ajudado muito, mas é uma decisão de foro íntimo. Como não está na lei, a decisão do juiz é baseada nas evidências que apresentamos a ele. Então, ele pode negar. Mas não encaminho casos polêmicos aos juízes, só aqueles em que há consenso científico. No Santa Joana, também temos a Comissão de Bioética, para a qual levamos os casos polêmicos. A Comissão de Bioética dá seu parecer e suporta a decisão do médico. A conduta é compartilhada dentro do Hospital.

SER. O senhor já teve alguma paciente que poderia beneficiar o filho com a cirurgia de mielomeningocele e não quis fazê-la?
MORON.
Tenho agora um casal que está no momento certo, mas acho que a mãe não vai fazer a cirurgia. Mostramos tudo, o filme, o procedimento, ela conversou com as mães que passaram por essa cirurgia, mas não voltou mais.


Cirurgia de mielomeningocele

A mielomeningocele é uma malformação em que a medula fica exposta e provoca hidrocefalia em mais de 90% dos casos - acúmulo de água no cérebro. Nessa exposição, os movimentos do bebê traumatizam as saídas nervosas. O líquido aminiótico também atua como um irritante para as raízes nervosas, causando lesão nas mesmas. Em conseqüência, a criança pode ter distúrbio mental, motor e incontinência.

Em 1997, o professor Joseph Bruner, da Universidade de Vanderbilt dos EUA, desenvolveu a técnica de operar mielomeningocele dentro do útero. O objetivo era fazer a cirurgia numa fase precoce, quando as estruturas do tronco cerebral ainda estavam no cérebro e não na coluna. A cirurgia, feita entre o quinto e sexto mês de gestação, atenuava essas conseqüências em 60%, segundo avaliações preliminares dos 180 pacientes operados.

Por uma abertura um pouco mais ampliada que de uma cesárea, o útero é exteriorizado. A gestante recebe anestesias peridural e geral. O feto é anestesiado por via transplacentária e recebe ainda uma injeção intramuscular, evitando que se mexa ou sinta dor. O líquido amniótico é aspirado e colocado em uma estufa, a 37 graus. Uma incisão de nove centímetros no útero permite retirar apenas as costas da criança para fora para que o neurocirurgião pediátrico faça a correção, procedimento que demora aproximadamente 15 minutos. Em seguida, o líquido aminiótico é devolvido ao útero, fechando-se todas as camadas abertas. Essa cirurgia, já realizada nos Estados Unidos em cerca de 180 fetos, também pode tratar outros defeitos em órgãos vitais.


Sem surpresas

Reinaldo Ayer de Oliveira*

Os procedimentos cirúrgicos sobre o feto intra-útero representam um passo significativo na Medicina Fetal. A possibilidade de diagnóstico de anomalias por diferentes métodos e, especialmente, pelo uso da ultra-sonografia é resultado do melhor acompanhamento pré-natal. Houve um tempo em que a atenção do médico era voltada para o momento do parto. O desfecho da gravidez era uma surpresa. Quando nascia uma criança surgiam perguntas como: É normal? Tem todos os dedos? É menino ou menina? Quanto pesa?  E, por fim, qual é a cor dos olhos? Esta era a seqüência ? muitas vezes filmada pelo pai ? do que ocorria na sala de parto.

A arte da Medicina, estruturada nos avanços científicos e tecnológicos, está justamente em evitar ou minimizar o efeito surpresa, seja no desfecho de uma doença ou em situações como a do parto. No caso da obstetrícia, o envolvimento ético da paciente com o médico começa antes, isto é, no planejamento de uma gravidez, embora isso não aconteça na maioria das vezes. A boa relação entre o médico e a paciente é construída e reafirmada durante todos os momentos do acompanhamento pré-natal, sem qualquer cerceamento da autonomia.

Em casos de malformações fetais, o cuidadoso pré-natal possibilita o diagnóstico de anomalias. Completado esse diagnóstico, com alto grau de precisão, no caso da Medicina Fetal, o desafio atual é o da decisão. As possibilidades terapêuticas envolvem o médico, a gestante, seu companheiro, o feto e, sobretudo, a compreensão dos aspectos éticos envolvidos. Uma anomalia do feto desencadeia um processo de reflexão ética autônoma. O elemento de ligação essencial desta relação, construída com bases sólidas na empatia e na confiança, é a informação. Na gravidez, fruto da relação amorosa da mulher e seu companheiro, há uma transcendência do simples ato procriativo para a efetiva expressão do desejo de ter um filho ou gerar um novo ser humano. É aí que se discute, entre o médico e a gestante, a condução adequada do pré-natal considerando os avanços científicos e tecnológicos à luz de uma fundamentação ética. A instrumentalização do médico com recursos que possibilitem a intervenção sobre anomalias fetais significa que o fruto do desejo da mulher e do seu companheiro chegará à termo em boas condições no nascimento. Não haverá surpresas!

Uma jovem mãe que passou pela situação em que seu feto (afeto) portava uma anomalia disse: "saber tudo ajudou a enfrentar o desafio".

* Reinaldo Ayer de Oliveira é conselheiro do Cremesp e professor de Bioética da Faculdade de Medicina da USP


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