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Vício e Vulnerabilidade


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Edição 323 - 03/2015

BIOÉTICA 2 (pág. 15)

Vício e Vulnerabilidade


Fumante é vulnerável ou exerce livre-arbítrio?

Decisão da Justiça de São Paulo, favorável à indústria, traz de volta ao debate a autonomia do fumante

 

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou, em fevereiro, ação coletiva indenizatória a fumantes e ex-fumantes movida vinte anos atrás pela Associação de Defesa da Saúde dos Fumantes (Adesf) contra duas gigantes do setor, a Souza Cruz e a Philip Morris. Por unanimidade, os desembargadores decidiram que fumar é uma questão de “livre-arbítrio”, mesmo tendo em mãos laudos periciais relacionando a publicidade à dependência, e o tabagismo, ao aparecimento de doenças. A vitória da indústria na Justiça reacendeu o debate: fumar é hábito baseado na autonomia do usuário de tabaco ou ele é refém de uma indústria poderosa? 

A publicidade de cigarro em meios de comunicação de massa foi proibida em 2000 e a Lei Antifumo do Estado de São Paulo (que veda fumar em ambientes fechados de uso coletivo) passou a vigorar em 2009, isto é, bem depois de a ação haver sido impetrada.


Vulneráveis?

A Adesf deve recorrer da decisão, com base na suposta vulnerabilidade do usuário.

Concorda com essa teoria Ana Lúcia Mendes Lopes, que em 2014 defendeu tese na Escola de Enfermagem da USP, focalizando o serviço de tratamento de tabagistas. “A premissa de que bastaria o livre-arbítrio é controversa, pois parece não acompanhar a mudança de paradigma das crescentes evidências científicas divulgadas nos últimos 30 anos: o tabagismo é doença e a nicotina causa dependência física, química e psicológica, interferindo no organismo e no comportamento”.

Na opinião da médica Margareth Priel, reitora da Universidade de Santo Amaro (Unisa) e membro da Câmara Técnica de Bio­ética do Cremesp, se o ato de fumar for considerado fruto da autonomia, de fato, pode-se pressupor que o fumante deva assumir as consequências para si e arcar com os efeitos aos demais. Mas “sabemos que a nicotina, entre tantas outras substâncias presentes no cigarro, atua nos receptores presentes nos diversos tecidos corporais, inclusive no sistema nervoso, modulando o sistema de alerta e a ansiedade”.

Em notas, os fabricantes de cigarros ressaltam que a posição do TJ-SP se respalda em muitas ações já proferidas no Judiciário e que os riscos de fumar “já são amplamente conhecidos e as pessoas os assumem, de forma voluntária”. Em seu site, a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) afirma que tribunais no Brasil e nos Estados Unidos reconhecem que “os problemas de saúde ao usuário do fumo dependem de uma complexa interação, ainda parcialmente desconhecida pela ciência”, que envolve predisposição genética, fatores comportamentais e ambientais.


Diretrizes

Entre médicos é possível vislumbrar que a controvérsia jurídica seja significativa, mas que o que importa são os aspectos científicos e éticos inseridos no debate. Em relação ao primeiro, cabe mencionar as diretrizes Clínicas na Saúde Suplementar, iniciativa conjunta de 2011 da Associação Médica Brasileira (AMB) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que considera o tabagismo como “problema de saúde pública” em razão da “alta prevalência de fumantes” e “da mortalidade decorrente das doenças relacionadas ao tabaco” (veja box).

“Não há dúvidas. A indústria fica com o bônus e toda a sociedade arca com o ônus, com hospitais cada vez mais cheios, em consequência do vício”, destaca Paula Johns, presidente da ONG Aliança de Controle do Tabagismo (ACT).

Segundo ela, estudos apontam que o consumo de cigarro se inicia cedo, na fase da adolescência. Além disso, diz, análises científicas identificam que o conhecimento do tema disponibilizado à Justiça é falho: “os desembargadores acabam julgando ações com base em sensos comuns moralistas, tomando decisões sem qualquer fundamento, alimentadas por teses construídas pela indústria do tabaco”.
 


Brasil tem 27,9 milhões de fumantes

De acordo com as diretrizes Clínicas na Saúde Suplementar, da Associação Médica Brasileira (AMB) e Associação Nacional de Saúde Suplementar (ANS), há 27,9 milhões de fumantes no Brasil, consumindo 110 bilhões de cigarros por ano, acrescidos de 48 bilhões procedentes de con­trabando.

No mundo, a mortalidade anual relacionada ao tabaco é de 5,4 milhões de pessoas – 70% em países em desenvolvimento – sendo que, no Brasil, estimam-se 200 mil óbitos por ano. A previsão é que ocorram 10 milhões de óbitos relacionados ao hábito de fumar no ano 2020, sendo 7 milhões em países em desenvolvimento.
 


Estados Unidos lideram indenizações

As ações indenizatórias contra fabricantes de cigarro começaram há mais de 60 anos nos Estados Unidos. Apenas para dar-se uma ideia, em 1998, o movimento antitabagista conquistou vitória, que culminou no aumento da carga tributária aos fabricantes de 35% para 50%.

Recentemente, uma viúva na Flórida ganhou na Justiça o direito de receber da RJ Reynolds Tobacco – a segunda maior fabricante de cigarros no país – US$ 23,6 bilhões, por atribuir ao fumo a morte do marido, por câncer no pulmão. Se a decisão for mantida após recurso, será a maior ação individual naquele Estado.

Porém, nem todos estão felizes pelo cerco ao tabaco: proliferam entidades como o Instituto Heartland – cuja missão é desenvolver “soluções de livre mercado” – contrárias à “demonização” dos fumantes, que “já pagam impostos demasiados altos, para serem justos”. Além disso, em 29 Estados há leis de proteção aos tabagistas, que impedem, por exemplo, discriminação ao trabalhador “que usar produtos do tabaco fora do horário de expediente e das dependências da empresa”.

 

 


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