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Peter Singer falou ao JC no VI Congresso Mundial de Bioética


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Edição 184 - 12/2002

ENTREVISTA

Peter Singer falou ao JC no VI Congresso Mundial de Bioética


Longe do rótulo de Doutor Morte

Quem mantém o mínimo contato e tem acesso a alguns trechos da biografia do filósofo australiano Peter Singer, professor da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos e primeiro presidente da International Association of Bioethics (IAB), nos anos 70, fica com a impressão de ser infundada a alcunha atribuída a ele pela imprensa de “Dr. Morte” australiano. Polêmicas, suas idéias são. Mas nem de longe comparáveis aos atos dos outros “Doutores Morte” que já passaram para a história, como o médico inglês Harold Shipman (prisão perpétua por ter matado centenas de pacientes com injeções letais de cocaína) ou o americano Jack Kevorkian (criador da “máquina” do suicídio). Controversa ou não, sua visão a respeito da eutanásia apenas concorda em lógica com sua linha filosófica, a Utilitarista, segundo a qual uma ação é moralmente correta se tende a promover a felicidade e condenável caso gere infelicidade. “Se as perspectivas de futuro de um ser conterão mais sofrimento do que prazer e a morte não tiver impacto sobre a vida de outras pessoas, um utilitarista não se oporia a ela” defendeu, em mesa-redonda no VI Congresso Mundial de Bioética. Veja, a seguir, trechos da entrevista concedida ao Cremesp (publicada na íntegra no site do Centro de Bioética: http://www.bioetica.org.br).

Jornal do Cremesp: O senhor disse durante o Congresso algo como “é pior realizar a eutanásia em um animal que, de alguma forma, possui capacidade mental, do que em um ser humano, sem nenhuma”. A idéia é polêmica, não?
Peter Singer: Realmente, é controversa. Porque gostamos de pensar que os seres humanos sempre têm um nível mental mais elevado do que o dos animais. Isso é cientificamente falso. Há humanos com prejuízos mentais tão severos que os impedem de se comunicar; de tomarem conta de si próprios ou resolverem problemas, solucionados facilmente pelos não-humanos.

JC: Seu debatedor, o dr. Van Delden, argumentou que a eutanásia pré-requisitada é “inconsistente” pois nem sempre “é possível para o médico saber se um portador de demência quer realmente ser sacrificado e se é infeliz, na época da consumação do ato”. Está errado?
Singer: Concordo com ele que, nesse ponto, há uma brecha na lei aplicada na Holanda e na Bélgica (que exige que o solicitante possua compreensão clara e correta de suas condições e de outras possibilidades médicas). Deve-se respeitar a vontade de pessoas com demência que optaram pela eutanásia no passado? Sob o meu ponto de vista, sim, pois elas ponderaram e usaram sua autonomia enquanto ainda estavam aptas. Deixaram claras aos seus médicos especificações do tipo: “se não conseguir reconhecer meus próprios filhos, não quero mais continuar vivendo”. E, no momento da prática da eutanásia, o médico conta com autoridade suficiente para resolver.

JC: Mas o dr. Van Delden chegou a questionar exatamente esse critério. Segundo ele, o paciente pode “não se lembrar mais dos nomes dos familiares, mas como saber se não reconhece o calor humano envolvido nessa relação”?
Singer: De qualquer forma, acho que as preferências do indivíduo devem ser respeitadas. Se, quando consciente, avaliou “não há dignidade em viver se eu não conseguir reconhecer meus próprios filhos”, como contrariar? Eu não gostaria de viver desse jeito. Ainda que exista algum mecanismo em meu corpo que me permita brincar com uma bola, mas nenhum outro, capaz de me levar a reconhecer meus parentes, falar ou fazer quaisquer outras coisas que me eram valiosas... Se for essa a situação, o certo para mim seria alguém avaliar: “ele não quer mais viver”.

JC: A mesa-redonda relativa à Morte Assistida contou ainda com a presença da professora Margaret Battin, que chocou a platéia ao abordar a Nu Tech, “tecnologia”, cada vez mais popular, que permite às pessoas se matarem em casa, sem dor nem vestígios, usando inalação do gás hélio. Para os médicos, estar fora do processo de suicídio de seus pacientes não seria o caminho mais fácil?
Singer: Obviamente, seria muito mais fácil. Mas não acho que seria o mais adequado. Gosto da idéia do paciente poder contar com um médico, ou melhor, com dois médicos, como acontece na Holanda e na Bélgica. A pessoa pode questionar, ter com quem conversar e, principalmente, confiar em alguém capaz de dizer “veja, você ainda pode aproveitar sua vida” ou, na pior das hipóteses, obter uma posição técnica referente às chances reais de recuperação ou sobre a inexistência das mesmas. Se o suicídio for facilitado a esse nível, alguns podem cometer o erro de se matar enquanto estão temporariamente deprimidos ou coisas assim...

JC: Primeiramente, a eutanásia foi aprovada na Holanda, depois, na Bélgica. Também é permitida no Estado de Oregon, nos EUA. Trata-se de uma tendência?
Singer: Sim, penso que isso vai acontecer. Só não posso prever quando... Pode demorar mais de 10 anos. A Bélgica custou a seguir o exemplo da Holanda que, durante um bom tempo, foi o único país a permitir a eutanásia, em certas circunstâncias e com regras bastante severas.

JC: É diferente defender a eutanásia em seu país, a Austrália, se o senhor comparar com outros tipos de culturas, onde prevalecem padrões religiosos rígidos?
Singer: Isso é verdade. Mas tudo parece estar mudando. Veja: a Espanha e a Itália são países fortemente católicos, mas que vêm demonstrando abertura com relação à aceitação do aborto e fertilização in vitro, por exemplo. Acho que os pensamentos já não são tão radicais e, talvez, outros países latino-americanos católicos estejam indo pelo mesmo caminho. Esse enfraquecimento das autoridades religiosas é positivo. As sociedades inseridas em culturas fortemente religiosas demoram mais a se desenvolver. Existem culturas e países que rejeitam as pessoas que não aceitam suas crenças religiosas, tentam impedí-las de tomar suas próprias decisões. É uma enorme violação.

JC: Neste último Congresso Mundial falou-se muito em uma Bioética de intervenção e não apenas reflexiva...
Singer: Penso que a Bioética não deve intervir diretamente na vida dos indivíduos. A intervenção deve acontecer no sentido de conduzir as pessoas a terem diferentes pensamentos, capazes de levá-las a diferentes modos de vida e posturas. Não vejo que isso seja nem reflexão, nem intervenção: trata-se de uma intervenção nas reflexões. Complicado?

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