CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Compromisso com a população e a classe médica
ENTREVISTA (pág. 4)
Ian Frazer
CRÔNICA (pág. 10)
Parece Mentira. Só que não...
CONJUNTURA (pág. 12)
"O oposto da paz é fanatismo e morte"
ESPECIAL (pág. 12)
Assistência à saúde atrás das grades
EM FOCO (pág. 22)
Lítio e neuroproteção
SINTONIA (pág. 27)
Pet terapia
GIRAMUNDO (pág. 30)
Arte, genética e ciência
PONTO COM (Pág. 32)
Mundo digital e tecnologia científica
HOBBY (pág. 34)
Adriano Segal
GOURMET (Pág. 38)
Tadeu Franconieri
CULTURA (pág. 42)
Aralquém Alcântara
CARTAS & NOTAS (pág. 47)
Cremesp reivindica mais investimentos na Saúde
FOTOPOESIA (pág. 48)
No circo
GALERIA DE FOTOS
ESPECIAL (pág. 12)
Assistência à saúde atrás das grades
Assistência à saúde atrás das grades
Para presidiários e presidiárias, assistência está submetida a normas legais e códigos de um universo paralelo
Ivolethe Duarte
O sistema carcerário brasileiro é apontado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como ambiente de violação dos direitos humanos, devido à superlotação de prisões sem estruturas adequadas, abuso de agentes do Estado e domínio de facções criminosas. A ausência do Estado é fator agravante das condições insalubres do encarceramento, que, por si, favorecem a incidência de doenças.
“A superlotação é um problema; em celas com 20 ou 30 pessoas aparecem várias doenças”, observa o médico Dráuzio Varella, que há 28 anos atende voluntariamente em prisões, autor, entre outros, dos livros Carandiru e Prisioneiras. Tuberculose e sarna são frequentes em prisões brasileiras, além de doenças sexualmente transmissíveis como Aids e sífilis. O sedentarismo, a alimentação pobre em nutrientes, as más condições sanitárias, o estresse e a ansiedade completam o quadro de adversidades que torna a pessoa privada de liberdade mais suscetível a doenças.
A dificuldade de acesso aos serviços é outro fator agravante. “A prisão não tem vocação para a saúde, toda sua organização é voltada à segurança, para manter as pessoas presas”, afirma Varella. “O preconceito muitas vezes nos impede de olhar para presidiários como seres humanos que merecem ajuda”, diz a educadora Flávia Ribeiro de Castro, fundadora da ONG Educaalma e autora do livro Flores do Cárcere, publicado em 2011, resultado do trabalho na área de educação, durante um ano, no Presídio Feminino de Santos.
De acordo com o coordenador nacional da Pastoral Carcerária, padre Valdir Vieira, com muita frequência os presidiários deixam de comparecer a consultas ou realizar exames marcados fora da prisão por falta de escolta. Os presos recebem visitas, inclusive íntimas, e a negligência com sua saúde também coloca em risco a população extramuros.
“A saúde nas prisões é muito dependente do diagnóstico clínico. Podemos pedir um exame, mas não sabemos quando ou se, de fato, será realizado”, conta Varella. “A clínica ganha grande importância nas cadeias”, acrescenta.
O artigo 14 da Lei de Execução Penal diz que a assistência à saúde da pessoa privada de liberdade compreende atendimento médico, farmacêutico e odontológico. Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado, a assistência deve ser prestada em outro local. O artigo 43 garante ao preso, em tratamento ambulatorial, o direito de contratar médico particular. Divergências entre o médico oficial e o particular devem ser resolvidas por um juiz.
Mas a lei pode ter pouca ou nenhuma eficácia no submundo que são as prisões brasileiras, sujeitas a códigos paralelos. No livro Prisioneiras, Varella fala, de forma reveladora, do período que atendeu no Centro de Detenção Provisória da Vila Independência, em 2004. “Os doentes que vinham para a consulta eram previamente selecionados pelos auxiliares do ‘piloto’ do raio correspondente, segundo critérios pessoais. Sem a autorização do grupo chefiado por ele, preso nenhum ousava ir ao médico.”
O real e o imaginário
“Realizar um ato médico pleno em uma instituição que prioriza a segurança pública sob um olhar policialesco é difícil e delicado”, afirma a psiquiatra Natália Timerman, médica do Centro Hospitalar do Sistema Penintenciário (CHSP) e autora do livro Desterros – histórias de um hospital-prisão. As consultas são feitas em uma sala com a porta aberta, a uma pequena e audível distância do agente que faz a escolta. Dificilmente o preso falará tudo ao médico.
“Também é mais difícil estabelecer um diagnóstico de surto psicótico entre pessoas presas”, revela a médica. “Como saber se é delírio ou real o relato de um paciente que se diz perseguido, quando ele vê o mundo por uma pequena janela de grade, vigiado por guardas que passam com arma na mão e vive em um ambiente dominado por facções?”, questiona ela.
De acordo com Varella e Natália, saber se o preso está falando a verdade é outro desafio do diagnóstico. Prisioneiros podem simular doenças para sair da cadeia, às vezes por ameaça de morte. “Há casos de pessoas que apresentam urina de outra ou colocam açúcar no dedo para passar por exames”, revela Natália.
A psiquiatra lembra que as pessoas presas vivem em um ambiente carregado de desconfianças e estigmas, o que é também fator desencadeante de doenças. Paradoxalmente, em algumas situações os estigmas parecem ser garantia de atenção à saúde. “Quando um preso chega a um hospital ou pronto-socorro, o atendimento tende a ser rápido porque querem se ver livre daquela pessoa que chega de uniforme, algemada e pode criar tensão no serviço”, afirma padre Vieira. “A morte de um preso dentro do ambiente prisional, por falta de atendimento, oferece risco à equipe de carcereiros, que sempre faz o possível para conseguir escolta, chegando a levar pacientes graves em seus carros”, conta Flávia. “Eu mesma acompanhei uma das carcereiras que levava uma jovem ao hospital”, completa.
“Cadeia em que a assistência médica funciona direitinho tem boas chances de ficar em paz”, ensina Varella. Mas a burocracia e a demora em conseguir autorização de saída para preso em estado grave pode contribuir para o aumento de mortes na prisão. “Qualquer tentativa de fazer uma análise mais criteriosa dos óbitos na prisão esbarra sempre na nomenclatura ‘morte natural’’’, afirma o coordenador da Pastoral Carcerária.
Perfil do preso brasileiro
Dos presos brasileiros, 67% são negros, 56% são jovens entre 18 e 29 anos e cerca de 53% não completaram o ensino fundamental. A maioria está presa por crimes não violentos, principalmente o tráfico de drogas (28%). Em geral, foram presos desacompanhados, desarmados e em periferias de grandes cidades. Cerca de um terço, em torno de 250 mil, está detida de forma provisória, aguardando julgamento. O Brasil é um dos países do mundo com maior contingente de pessoas encarceradas antes de serem julgadas.
Para Varella, o crescimento da população carcerária deve-se às mudanças na legislação sobre o tráfico de drogas em 2005, que endureceu as penas. “Antes da nova lei, 13% dos presos brasileiros cumpriam sentenças por tráfico. Hoje, no Estado de São Paulo esse contingente é de 30% entre os homens e perto de 60% nas cadeias femininas”, revela.
“A mentalidade de que ‘lugar de bandido é na cadeia’, considerando todos bandidos, independentemente do crime, não faz sentido do ponto de vista prático. As pessoas que cometeram um crime menor e são jogadas em prisões dominadas por facções vão sair pior do que entraram, voltando-se contra a sociedade com mais preparo do que antes”, diz Varella.
Varella defende a revisão das leis para crimes por porte de drogas, aplicando-se outras formas de pena. “As meninas que levam droga na vagina para dentro das cadeias poderiam receber uma pena administrativa em vez de cinco anos de prisão. Como o Estado pode garantir a integridade das pessoas quando coloca 25 presos numa cela que cabem 10?”, questiona Varella. Quem vai garantir a integridade são as facções. O poder das facções vem dessa fragilidade do Estado. Poder é um espaço abstrato que jamais permanece vazio”, escreve Varella.
Brasil mantém em cárcere um município de grande porte
Apenas um terço das prisões do País tem unidade de saúde
Estima-se que o Brasil tenha mais de 700 mil pessoas encarceradas, número superior à população do município de Santo André, no ABC paulista. O último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) aponta que em 2014 o Brasil tinha 622.202 presos, a quarta maior massa carcerária do mundo, atrás dos Estados Unidos, Rússia e China. Entre os anos 2000 e 2014, o Brasil ganhou 389.477 presos, um aumento de 167%, não acompanhado de novas vagas em presídios. O déficit era de 250 mil vagas, número superior ao de habitantes de cidades paulistas como Marília (226 mil) e Presidente Prudente (216 mil).
O Infopen 2014 apontou que pouco mais de um terço (37%) das unidades prisionais do País tem unidade de saúde. Entre as femininas, o percentual é de 52%. À época, o sistema carcerário brasileiro tinha 449 clínicos gerais, 37 ginecologistas, 187 psiquiatras e 33 médicos de outras especialidades. Os dados não incluíram São Paulo, único Estado que deixou de abastecer o Infopen. A Secretaria Estadual de Administração Penitenciária também não forneceu informações à reportagem.
Também é de 2014 a Portaria Interministerial nº 01, do Ministério da Saúde, que instituiu a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade (PNAISP) no âmbito do SUS. A normativa condicionou a liberação de recursos à adesão do Estado ao programa. Os que aderiram à PNAISP tinham prazo até 31 de dezembro de 2016 para a implantação de serviços e integração à rede do SUS. Padre Vieira diz que o programa pouco avançou desde 2014, em alguns casos por questões políticas como boicote de governos estaduais que faziam oposição ao governo federal.
A falta de oferta de atenção à saúde também passa pela dificuldade de contratar médicos e enfermeiros. “Há uma deficiência crônica de profissionais preparados e dispostos a fazer esse tipo de trabalho”, afirma Varella. “Alguns concursos públicos foram modificados para tentar atrair profissionais de Saúde, inclusive reduzindo horas e dias de trabalho. Mesmo assim, foi muito difícil encontrá-los”, afirmou padre Vieira. De acordo com ele, a defasagem de médicos é maior em Estados do Norte e Nordeste.
A tensão e a violência que rondam os cárceres brasileiros podem justificar o desestímulo ao trabalho em cárceres. Somente este ano, pelo menos três pessoas que trabalhavam em prisões foram mortas, incluindo o assassinato de uma psicóloga, atribuído a uma facção criminosa. Entretanto, para os médicos Dráuzio Varella e Natália Timerman a experiência é motivadora.
“No Carandiru no começo, era um pouco estranho ficar no meio da multidão. Assim que percebi que gozava da confiança – e o médico goza dessa confiança – relaxei completamente. Ando com mais tranquilidade nas cadeias do que nas ruas de Tóquio, porque tenho certeza de que não me acontecerá nada – a menos que haja uma rebelião, aí ninguém está seguro em cadeia nenhuma”.
Natália diz que sentiu algum tipo de medo apenas nos primeiros dias de trabalho. “Já sofri algum tipo de ameaça de paciente psicótico, mas é algo que poderia acontecer dentro ou fora da prisão”, pondera. “Atender pessoas privadas de liberdade, que nem mesmo são vistas como seres humanos pela sociedade, é uma experiência rica e transformadora para toda a equipe”, avalia Natália.
“Gosto de estar no meio dos presos, porque dessa forma é possível ganhar a confiança deles. Se o preso olha para o médico com desconfiança, vai negar informações importantes para o diagnóstico. A questão da confiança entre paciente e médico é absolutamente fundamental nas prisões, por isso sempre fiz questão de atender nos pavilhões, no meio dos presos. É a forma de fazer com que te aceitem. Com uma cela, uma maca, duas cadeiras e uma mesa, tenho um consultório. E nesses 28 anos nunca ouvi uma palavra enviesada ou um desrespeito”, finaliza Varella.
Boa parte das mulheres presas é coadjuvante passiva de crimes
O envolvimento com o tráfico também fez explodir a população penitenciária feminina, que subiu de 5.601 para 37.380 entre 2000 e 2014, um aumento de 567%. A maioria das mulheres presas também é jovem, 50% têm menos de 29 anos, apenas 11% concluíram o ensino médio, 80% são mães e 57% solteiras. Mais de 60% estão presas por tráfico de drogas e, 15%, por furto e roubo.
Médico voluntário da Penitenciária Feminina de São Paulo desde 2006, Dráuzio Varella descreve no livro Prisioneiras a faceta mais perversa da discriminação de gênero no País. Muitas são coadjuvantes passivas de crimes não violentos, relacionados ao tráfico de drogas, atendendo pedidos em submissão a uma figura masculina próxima. Parte das mulheres acabou presa quando flagrada tentando levar drogas ou outro produto proibido a parceiro na cadeia. Algumas dizem terem sido coagidas ao crime para saldar dívidas de parceiros ameaçados de morte em prisões. “São mães de dois ou três filhos, e arrimo de família, que, de uma hora para outra, ficam abandonados”, afirma Varella.
Uma vez na prisão, a maioria é esquecida por familiares, namorados e maridos – visitas íntimas são raríssimas. “A família pode ser complacente com a prisão de um homem, mas não perdoa e se envergonha com a de uma mulher”, afirma Varella. Nas prisões masculinas é comum ver grandes filas de visitas e até mesmo barracas para passar a madrugada, o que inexiste em unidades prisionais femininas. As grávidas saem da cadeia apenas para dar à luz. Depois, elas ficam com o bebê por seis meses em celas de uma ala especial.
“Uma das leis mais discricionárias e odiosas do mundo do crime é a ameaça de morte que mulher de bandido sofre caso o abandone na cadeia. Evidentemente, a reciproca não é verdadeira. O machismo egocêntrico confere ao homem o direito de esquecer a companheira, mesmo quando está presa por um crime cometido por ele”, escreve o médico em Prisioneiras.
Doenças degenerativas, obesidade, hipertensão arterial, diabetes, enfermidades reumatológicas e dores na coluna são as queixas mais frequentes entre as presas, segundo Varella. “São problemas gerados pela vida sedentária e por uma nutrição repetitiva que privilegia os carboidratos”, observa.
De acordo com o médico, as condições da penitenciária feminina são razoáveis, com duas prisioneiras por cela. Porém, o prédio é antigo, com infiltrações nas paredes e não há água quente há tempos. “As mulheres são mais organizadas e caprichosas que os homens, as celas estão sempre cuidadas e limpas”, avalia Varella.
Prisão de Santos
Do trabalho de um ano como voluntária na Penitenciária Feminina de Santos, Flávia Ribeiro de Castro recorda que o ambiente insalubre era a principal causa de doenças. “Banho gelado, sono ao chão e, inacreditavelmente, escovar os dentes e lavar o rosto em pia construída no nível do chão, no mesmo local onde se evacua, provocavam muitas doenças”, completa.
Flávia chama a atenção, no livro Flores do Cárcere, para as reclamações que as presidiárias fazem sobre a assistência médica. De acordo com a autora, o atendimento na unidade de Santos ocorria uma vez por semana e nunca conseguia suprir a demanda, o que gerava frustrações.