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Mauro Gomes Aranha de Lima - Presidente do Cremesp


ENTREVISTA (pág. 4)
Peggy Cohen-Kettenis


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Tufik Bauab*


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Por que as cotas raciais são importantes? - Aureliano Biancarelli


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Edição 77 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2016

ENTREVISTA (pág. 4)

Peggy Cohen-Kettenis

Disforia de gênero

Pais e médicos nem sempre estão preparados para lidar com transexualidade

Concília Ortona*

 

 

A holandesa Peggy Cohen-Kettenis é considerada por seus pares do meio acadêmico como a grande especialista no acompanhamento de crianças e adolescentes com disforia de gênero – nome dado pelos profissionais à condição de pessoas transexuais, ou seja, que apresentam desconforto persistente com o gênero imposto no nascimento.

Aos 68 anos de idade, dedicados em boa parte ao ensino sobre desenvolvimento de gênero e psicopatologia, a professora Cohen-Kettenis foi também chefe do Departamento de Psicologia Médica e do Centro de Perícias em Disforia de Gênero do Vrije University Medical Center Amsterdam, que oferece “um pacote completo de cuidados multidisciplinares para pessoas disfóricas de gênero de todas as idades”.

Quem pensa, porém, que sua aposentadoria recente a levou a um merecido descanso, se engana: “tenho alunos de doutorado, o que me mantém envolvida na pesquisa. Deixei de lado apenas as responsabilidades de gestão”, comemora, em entrevista exclusiva à revista Ser Médico. Isso, sem contar os artigos que continua escrevendo com entusiasmo, como critérios diagnósticos para o transtorno de identidade de gênero; cuidar de adolescentes transgêneros: perspectivas futuras; e Supressão da puberdade em adolescente com disforia: um acompanhamento de 22 anos, entre muitos outros.

Apesar de todo o trabalho e empenho voltados a fornecer uma luz a um tema repleto de dúvidas e insuficiência de estudos, há familiares e médicos que praticam “absurdos e discriminações”, como considerar que transexualidade reflete “uma escolha”; “um capricho”; ou mesmo, que culpam as mães de trans “por terem feito algo errado”.

Por outro lado, a professora, que também é avó, e mora nos arredores de Amsterdã, admite: “seria um desafio ter membros transgêneros na família”. Confira, a seguir, entrevista completa.

Ser Médico – O transexualismo é condição imutável?

Peggy Cohen-Kettenis – Nos círculos profissionais, já não se usa o termo transexualismo, que soa pejorativo. Não usamos também transexualidade, e sim disforia de gênero. Trata-se de um fenômeno complexo, referente a uma condição capaz de se configurar bastante extrema, mas também leve e flutuante, e, por vezes, associada à disforia anatômica. A maioria das pesquisas tem sido feita sobre a forma mais extrema, que parece ser permanente. Fiz vários artigos relacionados ao assunto, e acabei percebendo que muitos ainda não entendem os inúmeros e diversos eventos envolvidos nessa condição.

Ser – O que diferencia os transexuais de homossexuais? Uma mulher transexual (que nasceu com sexo masculino, mas se identifica com o gênero feminino) pode ser lésbica?

Cohen-Kettenis – Pessoas com disforia de gênero têm dificuldades em relação à sua identidade de gênero, isto é, seu sentimento de ser homem ou mulher difere dos critérios apenas biológicos. De fato, não se identificam com o sexo em que se encontram. Diferentemente, os homossexuais apresentam atração e desejo sexual por parceiros de seu próprio sexo, e se sentem perfeitamente felizes com seu corpo. São fenômenos bem separados: como qualquer outra pessoa, alguém com disforia de gênero pode se sentir sexualmente atraído por homens, mulheres ou por ambos os sexos.

Ser – A senhora é considerada a grande especialista em crianças e adolescentes transgêneros. A partir de que idade e sob que circunstâncias a pessoa se dá conta da disforia?

Cohen-Kettenis – As crianças podem mostrar comportamentos de gênero antes dos três anos de idade. No entanto, numa idade tão precoce, é complicado prever qual será o futuro delas. De qualquer forma, variações de comportamentos e preferências de gêneros podem sugerir disforia, particularmente se as crianças afirmam que querem ou gostariam de pertencer a outro gênero, ou detestam fortemente suas características sexuais, expressando que cortariam “seu pênis” ou “suas mamas”. Também chama a atenção se apresentam grande angústia quando impedidas de expressar interesses ou buscar atividades “incompatíveis” com seu sexo biológico. Serão futuros adultos com disforia de gênero? Provavelmente não. Mesmo crianças com diagnóstico de desordem de identidade de gênero nem sempre permanecem assim ao entrarem na puberdade. É bem mais provável que se descubram como homossexuais, que não eram pré-transexuais. Na verdade, uma revisão da literatura relativa à transexualidade apontou ao meu grupo que crianças com transtorno de identidade de gênero têm maior probabilidade de serem identificadas como gays ou lésbicas mais tarde na vida, em oposição à identificação como transgêneras.

Ser – Em um mundo de fantasia, como na infância, de que forma pais e especialistas em saúde podem chegar à convicção de que a criança ou adolescente é transexual?

Cohen-Kettenis – Como mencionei, na infância, não há como saber quem persistirá em seus comportamentos de identidade de gênero, e quem desistirá. Portanto, é questão de espera vigilante, que, às vezes, pode ser difícil para os pais e as crianças. Punir as crianças por suas preferências e comportamentos sexuais não é atitude sensata: tudo bem permitir que experimentem tais posturas em ambiente seguro. Se as atitudes permanecerem em torno da puberdade, são grandes as chances de que a disforia de gênero não vai desaparecer.

Ser – Os pais estão preparados para lidar com a transexualidade? O que pode acontecer se forçar meu filho com disforia de gênero a se comportar de forma oposta à qual se identifica?

Cohen-Kettenis – Além de não levar a mudanças em sua identidade de gênero, forçar crianças a se comportarem de acordo com seu sexo de nascimento pode ser bastante prejudicial em vários aspectos, em especial no emocional. Empenho e tolerância são necessários para explicar a elas por que não podem, diariamente, viver completamente o papel do sexo desejado. Sugiro aos pais vestirem seu filho(a) com roupas neutras, e permitir que brinque com crianças compatíveis com sua identidade de gênero. Em casa, ocasionalmente, podem deixá-lo(a) praticar cross-dressing (termo que se refere à conduta de vestir roupas ou usar objetos associados ao sexo oposto). Por outro lado, há situa­ções em que as famílias confundem e insistem que seus filhos são transexuais, quando, de fato, não são. É por isso que meu grupo não concorda com mudança social completa. Por exemplo, de nomes e prenomes, bem como roupas e penteados, antes dos primeiros estágios da puberdade, quando temos certa segurança de que a disforia permanecerá. Vale mencionar um estudo no qual descobrimos que as crianças que já viviam completamente no papel de sexo oposto tiveram problemas para dizer aos pais que queriam mudar de volta. Assim, se a criança realmente já fez uma mudança social tão completa, seus pais devem permanecer tão abertos quanto possível aos sinais de que seu filho deseja retornar ao seu papel original.

Ser – A partir do diagnóstico de disforia, qual é a fase ideal para iniciar a terapia hormonal e realizar a cirurgia para mudar de sexo?

Cohen-Kettenis – Terapia hormonal dá os melhores resultados físicos e psicológicos no início da adolescência, pois, assim, os jovens podem crescer segundo sua identidade. Só então avaliaremos profundamente a viabilidade e o desejo do paciente de partir para a cirurgia que, se for feita com cautela, leva a poucos arrependimentos, conforme a literatura. Especificidades já mencionadas relativas às crianças indicam que nunca devemos começar um tratamento com bloqueio de hormônios do sexo biológico antes da puberdade – em geral, em torno de 12 anos –, mas isso difere de adolescente para adolescente. Tal procedimento é completamente reversível: se pararmos o bloqueio, a puberdade biológica ocorrerá.

SerNem sempre os médicos e demais profissionais da saúde compreendem o que se passa. Como lidar com os pacientes transgêneros?

Cohen-Kettenis – É a completa verdade, que não acontece apenas no Brasil, mas em várias nações. Há muitos profissionais da saúde que conhecem pouquíssimo a respeito disso. No entanto, na maioria dos países ocidentais, incluídos Japão e África do Sul, existem clínicas especializadas para onde pessoas podem ser encaminhadas. Em geral, em países muçulmanos, a falta de compreensão e a discriminação são ainda piores. Exceção: curiosamente, no Irã, um fatwa (pronunciamento legal no islã, emitido por um especialista em lei religiosa, sobre um assunto específico) do Aiatolá Khomeini afirmou que transexuais “devem ser ajudados”. O resultado é que aquele país conta com clínicas especializadas, e os tratamentos com hormônios e cirurgia são possíveis e reembolsados pelo governo. Na Holanda, equívocos em acompanhamento raramente acontecem, porque há mais de 30 anos temos cuidados especializados. Mas ouvi histórias de colegas de outros países nos quais as pessoas não são compreendidas, recebem conselhos errados, são ridicularizadas e recusadas, ao solicitar prescrição de hormônios ou cirurgia para adequação de sexo. Profissionais sem experiência no tema expõem pacientes e familiares a todas as ideias erradas e preconcebidas que carregam. Por exemplo, que transexualidade é “uma escolha”; “um capricho”; “que o atendido deve se comportar corretamente”; a mãe dele “fez algo errado”; “a psicoterapia deve torná-los felizes novamente com o seu sexo biológico” – e vários outros absurdos.

Ser – Há base biológica para a transexualidade? Que outras razões podem levar pessoas a não se sentirem confortáveis com seu sexo biológico?

Cohen-Kettenis – Estudos cerebrais sugerem que há base biológica, mas talvez isso não seja o único fator. Como acontece em outros campos da ciência, só identificamos algo sobre a forma mais extrema da disforia. Não sabemos, por exemplo, quando a identidade de gênero se torna cristalizada e que fatores contribuem para identidade de variante de gênero. Insights nessas duas áreas seriam de grande utilidade ao nosso trabalho clínico. Em adultos, há tentativas de se identificarem as bases biológicas da identidade de gênero: em algumas áreas, verificou-se que o cérebro de pessoas trans difere do cérebro daquelas sem tal característica. Durante a infância, o desenvolvimento de variantes de gênero parece ter componentes hereditários. É preciso deixar claro que disforia de gênero nessa fase e na adulta não correspondem à mesma coisa. Assim, as descobertas em crianças não podem ser simplesmente extrapoladas para adolescentes e adultos.

Ser – Há estimativas sobre o número de transgêneros no mundo? Quem geralmente se sente pior com incompatibilidade de gênero com sexo biológico: crianças, adolescentes ou adultos? Homens ou mulheres?

Cohen-Kettenis – Estimativas? Não que eu saiba. No entanto, estudo recente indica que cerca de 1% das pessoas tem problemas relacionados à identidade de gênero, embora nem todas busquem soluções hormonais e cirúrgicas. Além destas, cerca de 2% relatam “estar confusas” quanto ao próprio gênero. Veja, vamos falar sobre quem se sente mais confortável com tal condição: as crianças o fazem melhor do que os adolescentes. Adolescentes, melhor do que os adultos. Mulheres, melhor do que os homens.

Ser – Qual é a importância de os transexuais poderem mudar os documentos, com seus nomes sociais?

Cohen-Kettenis – Obviamente, o documento de uma pessoa deve estar de acordo com seu gênero social. Caso contrário, a mudança nunca poderá ser completa. Quando estava no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Utrecht (Holanda), por solicitação do Comitê de Saúde (conselho médico consultivo do Ministério da Saúde Pública daquele país), realizei um estudo de avaliação sobre readequação de gênero, cujos resultados se tornariam a base para uma nova lei, que permite aos transexuais ajustarem suas certidões de nascimento. Durante muito tempo (e ainda em muitos países), as pessoas não tinham permissão para viver de acordo com sua identidade de gênero ou não tinham acesso a cuidados. Isso resultou em muitos problemas psiquiátricos, como depressão e suicídio, entre outros, além de morte social, abandono escolar e uso hormonal ilegal.

Ser – A senhora é psicóloga clínica. Em que momento decidiu se especializar em disforia de gênero? Está feliz com o campo? Tem algum familiar trans?

Cohen-Kettenis – Isso aconteceu quando meu departamento se envolveu no aconselhamento ao Ministério da Saúde. Embora estigma e discriminação contra as pessoas trans ainda existam, agora a situação é mais aceita como condição a ser tratada. Infelizmente, a pesquisa sobre o cuidado com transgêneros ainda é escassa: há pouca evidência para basear nossas decisões clínicas. Em particular, sabemos pouco sobre as consequências, em longo prazo, à saúde mental, social e médica, da abordagem clássica e suas variantes; e quanto ao atraso da puberdade. É claro que seria um desafio se um familiar apresentasse disforia de gênero, mas felizmente em meu país o acesso aos cuidados e situação social são relativamente favoráveis.

 

*Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP) 


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