CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág.1)
Renato Azevedo Júnior - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (págs.4 a 8)
James Drane
EM FOCO (págs.9 a 11)
Dormiu bem?
CRÔNICA (págs.12 a 13)
Tufik Bauab*
MÉDICOS NO MUNDO (págs.14 a 17)
Irène Frachon
DEBATE (págs.18 a 23)
Emergência e Regulação: novos desafios dos cursos de Medicina
SINTONIA (págs.24 a 27)
Novas práticas educativas no setor da Saúde
GIRAMUNDO (pág.28 a 29)
Curiosidades de ciência e tecnologia, história e atualidades
PONTO COM (págs.30 a 31)
Informações do mundo digital
HOBBY (págs.32 a 35)
Pediatra escala os maiores picos do mundo
HISTÓRIA DA MEDICINA (págs.36 a 38)
Especialidades médicas
LIVRO DE CABECEIRA (pág.39)
Por Bráulio Luna Filho*
CULTURA (págs.40 a 43)
Moacyr Scliar e Yann Martel
GOURMET (págs. 44 a 47)
Moqueca de camarão
FOTOPOESIA (pág.48)
Poesia anônima na capital paulista
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (págs.4 a 8)
James Drane
“Intervenções irracionais e inúteis devem ser evitadas”
Por Concília Ortona*
Determinar limites relativos a tratamentos de pacientes graves aflige os médicos desde o tempo em que a Medicina foi reconhecida como ciência, com Hipócrates. Mesmo assim, eles continuam sendo alvo de reflexão ética e deontológica. Tanto que a possibilidade de não se realizarem procedimentos desnecessários foi formalizada, no Brasil, na atualização mais recente do Código de Ética Médica.
Dentre os estudiosos que mais se dedicam a tal temática figura James Drane, médico psiquiatra, teólogo e professor emérito das Universidades da Pensilvânia e de
Edimboro, nos EUA. Em entrevista exclusiva à revista Ser Médico (a segunda concedida ao Cremesp, já que em 2002 falou ao Centro de Bioética), ele cita um limite ético “indiscutível” na intervenção médica: a futilidade. “Por definição, tratamento fútil é prejudicial e, por isso, intervenções irracionais e inúteis devem ser evitadas”, argumenta.
Ao longo de mais de quatro décadas, Drane – ex-consultor de Bioética da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) – escreveu livros profundos e bem embasados a respeito de Ética e Bioética em fase de morte e em Cuidados Paliativos. No mais recente, Caring to the end (Cuidando para o Fim, ainda sem tradução para o português), sugere políticas institucionais para a fase terminal da vida.
O professor aborda, também, temas como o aborto e a eutanásia, apresentando pontos de vista capazes de deixar os mais progressistas insatisfeitos, mas que são coerentes com a postura adquirida nos anos em que foi padre e professor de seminário, na década de 60. Nada de muito radical: na mesma época, lançou vários artigos questionando tradicionais ensinamentos morais católicos quanto ao controle de natalidade.
Gentil e bem-humorado, características raras para quem aborda sempre temas tão densos, explica que, apesar de estar aposentado há 21 anos, não consegue parar com sua carreira acadêmica. “Quero encontrar um substituto no Centro de Bioética da Universidade de Edimboro”, afirmou. Confira, a seguir, algumas de suas ideias.
Ser Médico – No Brasil, apenas em 2010, a possibilidade de limitação de tratamentos a pacientes com doenças graves e em fase terminal foi incluída no Código de Ética Médica, dando aos médicos a chance de “evitar a realização de procedimentos diagnósticos desnecessários”. É o caminho certo?
James Drane – O Brasil sempre foi uma das principais nações quanto à reflexão sobre questões médicas contemporâneas, e os bioeticistas brasileiros sempre se mostraram solícitos em ajudar os médicos a superar os dilemas que surgem nessas fases delicadas da vida. A ética quanto à limitação de tratamentos é assunto recorrente, mesmo antes de a Medicina passar a ser considerada como uma forma de ciência pela Medicina hipocrática, no ano 5 antes de Cristo. Desde tal época reconheceram-se as necessidades de estabelecer limites às intervenções para evitar as medidas fúteis. Ao longo da Idade Média, e no período moderno, freiras e outros religiosos que cuidavam dos doentes graves e moribundos ficavam, com frequência, em dúvida quanto aos limites, recorrendo aos teólogos católicos que se empenhavam em chegar a respostas morais e racionais, baseadas em soluções inteligentes, e em cuidadosa atenção às necessidades do paciente. Alguns exemplos dessas dúvidas relacionavam-se às diferenças entre atos e omissões; prolongamento da vida e prolongamento da morte; tratamentos proporcionais e desproporcionais; decisões voluntárias e involuntárias; e assassinatos diretos e indiretos. Infelizmente, tais dilemas ainda afligem aqueles que precisam tomar decisões sobre vida e morte.
SM – Os limites em tratamentos médicos, então, sempre estiveram presentes na pauta das discussões éticas e bioéticas?
JD – O novo campo da Bioética contemporânea começou no final da década de 60 nos EUA, sendo divulgado a partir daqui a outras partes do mundo. Por meio da Bioética, foram procuradas respostas racionais ao aparecimento de modernas metodologias da ciência em pesquisa médica e seus novos medicamentos, tecnologias e intervenções. Alguns fatos contribuíram para o desenvolvimento dessa nova disciplina. Dentre eles, o financiamento de fundos na área de Medicina, pelos EUA, após a 2ª Guerra Mundial, e a criação do Instituto Nacional de Saúde (NIH) nos arredores de Washington, onde contínuas investigações científicas foram realizadas. Em todas essas etapas, apareceram questões relacionadas aos limites de tratamento e ao uso de novas tecnologias, especialmente: quando devem ser evitadas e quem deve pagar pelos novos tratamentos.
SM – Em um texto sobre o conceito de “futilidade”, o senhor mencionou que “o direito de o paciente escolher ou recusar tratamento é limitado ao do médico em praticar seu trabalho de maneira responsável”. Como assim?
JD – Escolhas bizarras ou destrutivas não devem ser adotadas apenas porque partiram de pacientes, que não têm condições de projetar e prescrever seus próprios tratamentos. Historicamente – e até hoje – a futilidade corresponde a um limite ético de intervenção médica: por definição, tratamento fútil é prejudicial e, por isso mesmo, intervenções irracionais e inúteis devem ser evitadas. Mas identificar o que seja ou não “futilidade” depende de avaliação do médico, cujos compromissos éticos básicos dizem respeito à beneficência (fazer o bem ao paciente), e a não maleficência (não fazer o mal). Pacientes têm todo o direito de solicitar coisas diferentes e variadas, e de considerá-las benéficas. Só que tal opinião, por si, não cria obrigações éticas ao médico de cumprir os pedidos, o que pode, ao final das contas, gerar conflitos. Uma boa comunicação entre médico e paciente, fundamento de toda a ética na Medicina, consegue evitar tais divergências.
SM – A partir do raciocínio de que a opinião do paciente submete-se à do médico, há situações em que testamentos vitais podem ser ignorados?
JD – Quando existem reais opções de tratamento é lícito e benéfico que os pacientes participem da escolha terapêutica e realizem seu consentimento informado, inclusive, por meio de testamento vital. Porém, tal direito é limitado, em primeiro lugar, à capacidade deles de compreender e de escolher livremente. Mesmo escolhas de pacientes totalmente competentes são limitadas por: códigos de ética das profissões de saúde; leis e políticas públicas; interesses do Estado e da integridade profissional; valores éticos e políticos de determinadas instituições médicas; e pela justiça, igualdade e recursos financeiros limitados. Além desses, penso que os limites são dados por normas tradicionais e clássicas desenvolvidas ao longo dos séculos por teólogos morais católicos.
SM – Aqui, no Brasil, como deve acontecer em outras partes do mundo, há confusões sobre o que sejam, na prática, limitações de tratamento. De que forma é possível evitar excessos, por exemplo, em ambiente de terapia intensiva?
JD – Ambiguidades e confusões nas questões acima mencionadas são sutis e inevitáveis. Escrevi um livro a esse respeito – Caring to the end, policy suggestions and ethics education for hospice and home health care agencies – que pretende trazer esclarecimentos, além de buscar a melhor forma de se pensar políticas institucionais direcionadas tanto a espaços hospitalares comuns, como unidades de terapia intensiva. Mas, só para esclarecer: a diferença entre eutanásia e inevitáveis limitações de tratamento baseia-se na distinção clássica entre o ato de matar versus a omissão que pode resultar em morte.
SM – O senhor é contrário à eutanásia e ao suicídio. Por que motivo?
JD – Porque correspondem a violações da lei natural, ao 5º mandamento bíblico, e a todos os códigos médicos de ordem institucional, nacional, internacional, histórica e contemporânea. A maneira com que a Medicina é praticada e com que a ética médica é desenvolvida influencia na formação da cultura. Por sua vez, a cultura repercute no jeito que as pessoas agem. O que isso quer dizer? Que uma cultura que apoia e legaliza a eutanásia verá aumentar sua incidência de morte e, gradualmente, se tornará uma cultura de morte. Já o suicídio é um ato “contagioso”. Entre as pessoas que sofrem de depressão, o “matar-se” representa um grau constante de tentação. Suicídios tornados públicos imediatamente são acompanhados por imitações, criando mais mortes. Como todos sabem, nos EUA ocorrem, com certa frequência, chocantes matanças em massa, especialmente em escolas. O que não é noticiado nessas tragédias é que o que os assassinos estavam realmente almejando era suicidar-se. Em alguma instância, então, barreiras públicas precisam ser criadas para controlar o “contágio” ao suicídio e à eutanásia. Não trata de crença privada: é uma realidade pública, vista mais em diferentes períodos da história, e em diferentes culturas.
SM – Certa vez o senhor lamentou o fato de os códigos que classificam a vida humana como sagrada, proibindo tirar a vida de qualquer pessoa, estarem sendo substituídos por determinadas “crenças científicas” de “fundamentação não religiosa sobre moralidade”. Poderia explicar melhor?
JD – As culturas de nações desenvolvidas estão se tornando menos religiosas, e mais seculares, sob a influência do movimento iluminista europeu dos séculos 17 e 18, segundo o qual a ciência é a única forma de conhecimento. Sola Sciencia. O termo “sagrado” e a crença na sacralidade da vida humana praticamente desapareceram, levando as religiões a desempenharem um papel cada vez menor nas sociedades modernas, como acontece em todas as nações americanas. Em meio a tal situação, surpreende o interesse com que todos estão olhando ao primeiro Papa americano, que até agora se mostra como modelo de respeito à vida, ao invés de tirar a vida, e que pode elevar a religião a um novo patamar dentro das sociedades. Caberia aos cidadãos refletirem a respeito do que está acontecendo em suas culturas e dos fatos que têm originado suas crenças. Estarem atentos ou participarem de movimentos destinados a trazer de volta os ideais morais de caridade e cuidado de defesa da sacralidade da vida.
SM – Da mesma maneira que a limitação de tratamento, a abordagem dos cuidados paliativos passou a se popularizar há pouco no Brasil, tornando-se “área de conhecimento” em Medicina apenas em 2011. Uma sociedade com atendimento humanizado em saúde precisa valorizar práticas em cuidados paliativos? Por quê?
JD – Na Medicina contemporânea, os cuidados paliativos aparecem como alternativa à fase de morte como se fosse uma época de tortura. Práticas de cuidados paliativos e a criação de hospices tendem a se fortalecer no Brasil, nação que conta com uma cultura com profundas raízes católicas: não se pode ignorar que, seja qual for a religião, a ética católica baseia-se em valores como amor e carinho àqueles que necessitarem. Uma boa meta seria fortalecer essa sociedade “revolucionária”, em que o amor e os cuidados são conciliados à fraqueza e às falhas humanas. Por que não tomar parte dessa revolução pelo retorno dos indivíduos e culturas a influências mais humanas e amorosas?
SM – Recentemente, os Conselhos de Medicina brasileiros sugeriram mudança no Código Penal do país, abrindo a possibilidade de as grávidas decidirem pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem punição a ela ou ao médico. É um avanço ou um retrocesso?
JD – Códigos criminais voltados ao aborto são desafios a essa revolução firmada no amor e na cultura do cuidado, da qual estávamos falando. Está certo que uma vida humana emergente deve ser respeitada, e que este não pode ser o único valor a ser considerado em situações em que a gravidez está associada ao perigo de morte da mãe. Essas gestantes precisam ser ajudadas, bem como outras, cuja gravidez foi imposta por abuso sexual. Por outro lado, a vida humana, mesmo em fase de desenvolvimento, não pode ser sacrificada em virtude de causa egoísta ou simples desejo.
* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública pela USP.
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