CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág.1)
Renato Azevedo Júnior - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág.4)
Susan Greenfield
CRÔNICA (pág.11)
Fabrício Carpinejar*
SINTONIA (pág.12 a 15)
Neurociência e Filosofia
DEBATE (págs.16 a 21)
Todos os cidadãos têm o direito à saúde garantido?
EM FOCO (págs. 22 a 25)
Medicina sobre rodas
GIRAMUNDO (pág.26)
Curiosidades de ciência e tecnologia, história e atualidades
PONTO COM (pág.28)
Informações do mundo digital
HISTÓRIA (págs. 30 a 33)
Com 112 anos de história, Intituto Butantan é um dos maiores centros de biomedicina mundial
HOBBY (págs.34 a 37)
Médicos dedicam-se a escrever poemas
CULTURA (pág.38 a 41)
Pinacoteca de São Paulo realiza mostra sobre gravura brasileira
LIVRO DE CABECEIRA (pág.42)
Por Marco Tadeu Moreira de Moraes*
CARTAS & NOTAS (pág.43)
Medicina na Bolívia atrai grande número de brasileiros
TURISMO (págs. 44 a 47)
Cidades de Santa Catarina guardam um pouco da cultura europeia
FOTOPOESIA (pág.48)
Oscar Niemeyer
GALERIA DE FOTOS
DEBATE (págs.16 a 21)
Todos os cidadãos têm o direito à saúde garantido?
O direito à saúde
Houve avanços na saúde no Brasil após a Constituição de 1988 decretar que ela é um direito de todo cidadão? A prática, em contínua expansão, de pacientes exigirem medicamentos, internações ou procedimentos de saúde ao Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Justiça – conhecida como judicialização –, elevando enormemente os gastos, é excessiva? Quais suas consequências? Os planos de saúde respondem às necessidades dos usuários? O que fazer com o insuficiente financiamento do sistema público? Os recursos humanos – principalmente os médicos – estão sendo formados adequadamente? Para responder essas e outras questões, a Ser Médico convidou a advogada, coordenadora do curso de especialização em Direito Sanitário Idisa-Sírio Libanês, e consultora do Ministério da Saúde, Lenir Santos; e o advogado e presidente da Comissão de Estudos sobre Planos de Saúde e Assistência Médica da OAB-SP, Paulo Oliver, para um debate, mediado pelo conselheiro e diretor de Comunicação do Cremesp, João Ladislau Rosa. Confira, a seguir.
Lenir Santos, João Ladislau e Paulo Oliver, durante
o debate sobre o direto à saúde no Brasil
Ladislau: A Constituição de 1988 garantiu o direito à saúde universal. Antes dela, a saúde era ligada à Previdência Social, e não existia nem um departamento público que cuidasse dessa área adequadamente. Houve avanços, de 88 até agora?
Lenir: Tivemos inúmeros avanços. A Previdência Social dava assistência ambulatorial, hospitalar e médica apenas aos trabalhadores com carteira assinada e a seus beneficiários. Cuidava-se pouquíssimo da saúde. Graças à Constituição de 88, temos, atualmente, 5.568 municípios, os 27 Estados e a União cuidando da saúde. O problema é que saímos de um sistema que garantia saúde para 30 milhões de pessoas, para outro que deve garantir esse direito para 190 milhões. Não é uma tarefa simples. Apesar das dificuldades, temos grandes progressos, como o exemplar programa de transplante, hoje inteiramente público; e o de AIDS.
Paulo: Houve melhorias no sentido do atendimento à população, mas não na estrutura médico-hospitalar, que deixa, ainda, muito a desejar. Nas campanhas eleitorais, os candidatos falam muito sobre a saúde, mas, depois de eleitos, não cumprem, ou não possuem condições de cumprir a promessa.
Lenir: O grande mérito é o direito à saúde estar inscrito na Constituição, garantindo que ele seja universal e igualitário em relação às ações de promoção, proteção e recuperação. Sabemos o quanto tem sido difícil esse acesso, pois, muitas vezes, as pessoas não conseguem ser atendidas porque há falta de serviço, a sua organização não é adequada, faltam médicos, entre outros obstáculos. Isso faz com que muitas delas acessem seus direitos via Poder Judiciário. Muitas decisões judiciais acabam por ferir o princípio da igualdade, tendo em vista a existência, quase sempre, de alguém que será preterido na fila, no procedimento, na cirurgia ou na internação, ante a existência das dificuldades com o acesso.
Paulo: Insisto que a questão é totalmente estrutural. Por exemplo, o governo prepara tanta gente para a medicina, mas não se preocupa com a especialização de seus profissionais da saúde. É o que leva muita gente a pedir intervenção da Justiça, pois chega a um hospital e fica na fila. A necessidade, muitas vezes, é premente, como um câncer já em estado avançado, descoberto de última hora. Tive um caso em que a pessoa me procurou, mas morreu três meses depois, na véspera da consulta que tinha conseguido. E olha que era um hospital bom, que atende bastante o SUS, mas a liminar não fora cumprida.
Ladislau: As pessoas que entram com ações contra o Estado para obter determinado medicamento ou procedimento têm uma visão absolutamente individual, pois, geralmente, já existem respostas no serviço público para a grande maioria dos problemas. Às vezes, é difícil acessá-las, mas já existem. Está havendo, realmente, um excesso do que chamamos de judicialização da saúde...
Lenir: Concordo que há um excesso de demandas judiciais. E, sem dúvida, ela é um grande ponto negativo que tanto demonstra que algo vai mal na saúde quanto o modo como o Judiciário tem decidido essas demandas. Não negamos as dificuldades do serviço público. Por outro lado, parte da sociedade tem uma visão individualista do sistema de saúde e mal o conhece. A maioria das pessoas que demanda contra o Estado para obter algum serviço de saúde tem um plano de saúde. O que ela quer do SUS? Só aquilo que o plano não garante. Esse modo de enxergar o SUS como complementar aos planos de saúde constitui um sério problema para a sua organização. O Estado de São Paulo gastou, em 2011, por volta de R$ 800 milhões com medicamentos reivindicados por meio da Justiça. Isso não é normal, arrebenta com o SUS e desorganiza qualquer planejamento. O sistema tem de ter uma estrutura e uma organização – previstas, inclusive, pelo artigo 198 da Constituição – respeitadas. E o Judiciário, quando garante demandas de maneira totalmente isolada, sem olhar para o sistema como um todo, o desestrutura, porque muitas vezes o orçamento do município não tem capacidade para atender a esses pedidos, até porque não cabe a ele a responsabilidade pela realização daquele serviço. Estamos deslocando a política para o Judiciário, porque tudo isso deveria ser objeto de discussão no Congresso, em especial a questão do financiamento. Quem da sociedade se interessou pela regulamentação da Emenda Constitucional 29, que trata dos percentuais do orçamento da saúde? A Lei Complementar 141, votada em 2012, foi pouco comentada na imprensa e ela tem grave impacto na saúde por também tratar do seu financiamento. E isso deveria ser do interesse de todos.
Paulo: A saúde é um direito constitucional. Conheço juízes que julgam contra sua própria consciência. Dizem: “vocês, advogados, vêm com o pedido baseado na lei, alegando que há perigo de vida... Sou obrigado a acatar, não há nada na lei em que possa me apegar para indeferir o pleito”.
Ladislau: Qual o critério que o juiz utiliza para avaliar uma receita médica?
Lenir: Ele deveria ouvir a Secretaria de Saúde municipal ou estadual, e convidar os profissionais responsáveis, para compreender como o sistema funciona. Deveria abrir um canal de comunicação, que poderia ser por meio da internet. Ele receberia a demanda e a remeteria para a Secretaria, para entender aquela receita médica ou aquela solicitação, sem ir deferindo uma liminar, assim de pronto. Muitas vezes, o medicamento nem está na Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais). Pode ser, até mesmo, um medicamento importante que deveria estar, mas não está registrado na Anvisa. Será que o médico que deu a receita é o porta-voz único e ninguém mais pode ser ouvido a respeito? Ele é o dono da verdade? É um caminho muito pernicioso, que transforma o SUS em um sistema de consumo de saúde, de maneira individual, descaracterizando sua estrutura sistêmica, regional, nacional e coletiva.
Paulo: A dra. Lenir falou da EC 29. Forçoso lembrar que foram quase 13 anos de luta para sua aprovação. Quantas legislaturas se passaram e a emenda ficou parada na gaveta do presidente de alguma comissão do Senado ou da Câmara? Isso demonstra que falta boa vontade, faltou diálogo para estabelecer prazos. Mesmo os percentuais destinados à saúde, previstos pela EC 29, não são suficientes para o SUS ter a tecnologia moderna que os hospitais de ponta têm. Aliás, esses hospitais, assim como outros privados, têm isenção de imposto de renda. Isso precisaria ser revisto, pois significa que, indiretamente, nós estamos pagando! É dinheiro nosso. Já o SUS não pode dar, sequer, condições mínimas de trabalho aos médicos. Os advogados, quando em demanda, não pedem certificação do hospital. É falta de cultura jurídica. Eu peço a certificação, é preciso saber se o hospital dá condição de trabalho ao médico.
Ladislau: E quanto aos planos de saúde, eles estão respondendo às necessidades dos usuários e garantindo o seu direito à saúde? Esses planos complementam o SUS, como diz a expressão “saúde complementar”?
Lenir: Os planos de saúde atendem 40 milhões de pessoas, em um contingente de 190 milhões. E elas querem sempre ter renda para comprá-los; não se interessam em lutar pela melhoria de um direito constitucional. Sabemos que há dificuldades no sistema público, o que leva as pessoas a se preocuparem com a sua saúde e comprarem um plano de saúde. Mas é preciso também conhecer melhor o sistema e reivindicar o seu direito de forma mais coletiva, discutindo o financiamento, indo nos Conselhos de Saúde. Isso é cidadania. Outra questão é que os beneficiários de planos de saúde geralmente são os que demandam judicialmente, desconsiderando toda a estrutura organizativa do sistema, pretendendo, de maneira individual e por via judicial, apenas um medicamento ou um procedimento. Não há um desejo das pessoas de lutar politicamente para melhorar o financiamento e, portanto, o atendimento. Quanto aos planos, alguns fazem promessas que não podem cumprir. Também há filas para se marcar certos exames... Então, temos problemas nos dois campos, no público e no privado. Temos de falar também de todos os que foram atendidos e bem-sucedidos no sistema público, que nunca é notícia. É preciso que a sociedade tenha, fortemente, esse sentimento de pertencimento para poder fazer reivindicações a favor do SUS, como melhorar o seu financiamento, a sua gestão, e a formação de recursos humanos.
Paulo: Tudo isso, na verdade, reconhecemos como falta de cultura de nosso povo para viver em sociedade. Vivemos em um regime no qual manda quem tem poder financeiro. Nós temos de entender essa realidade. Por exemplo, quando um plano de saúde compra outro, absorve toda a carteira de usuários, mas ninguém pensa que é preciso integrar os funcionários da empresa que foi adquirida, aumentar o pronto-socorro, comprar o prédio ao lado para ampliar o espaço... Não fazem nada disso. Primeiramente, demitem todo mundo, não fazem nenhuma melhoria e, claro, as filas aumentam. Mas ninguém pensa em consultar um advogado para ajudar a ler o contrato e ir para a Justiça requerer seus direitos e argumentar: “você comprou a carteira, mas eu tenho esse direito aqui, e você muda?”. Então é falta de cultura jurídica, pois nós temos um advogado em qualquer esquina. No atendimento hospitalar público é a mesma coisa. Basta irmos à porta da Santa Casa de São Paulo e dar uma olhadinha na rua Itambé, que fica ao lado. Lá ficam estacionadas ambulâncias de outros municípios. E aqueles necessitados que estão aqui em São Paulo, na fila? Ficam esperando e não são atendidos! Porque a ambulância entra direto. É uma situação desagradável.
Ladislau: Quando se fala em direito à saúde, obviamente é preciso ter uma boa estrutura de recursos humanos. E onde estão e quem são os nossos agentes nessa área? Temos uma dificuldade muito grande em relação a esse tema. Nos países europeus o médico tem de fazer residência em medicina da família ou em clínica geral, e só depois faz a especialização. Inclusive, o salário desse profissional é por volta de 5 mil euros, praticamente o mesmo que se está pagando aqui em São Paulo. Mas lá tem planejamento. Eles definem o número de especialistas que precisam. No Brasil, não tem nenhuma regra. Os médicos fazem a residência que querem, com interesse puramente pessoal. Como analisamos isso do ponto de vista do Estado, de forma que tenhamos as mais diversas áreas de atuação dos profissionais em número suficiente para atender toda a população?
Lenir: Esse é um gravíssimo problema. Não é porque o país é livre que não tenha de fazer regulamentações. Quando a Constituição universalizou o acesso, não “universalizou” a formação do profissional de saúde. Deveriam ter sido tomadas iniciativas no sentido de regulamentar a residência médica, de modo a atender aos interesses do SUS. Deveria haver um planejamento: “vamos precisar de X médicos de saúde da família, ao longo de dez anos”, por exemplo. Então, a residência paga pelo governo deveria priorizar a formação de médico para a saúde da família. A formação de recursos humanos para a saúde é um gargalo que vai estourar em breve. Todos os secretários de saúde reclamam que não têm médicos com formação em saúde da família para contratar ou outra especialidade, como psiquiatras para os Centros de Atendimento Psicossocial. Como fortalecer a atenção primária sem profissionais para a sua execução? A formação em saúde está sob responsabilidade do Ministério da Educação (MEC), e não do Ministério da Saúde como deveria ser. Isso tem de ser repensado. Pode-se até ter mais financiamento, mas se não tivermos recursos humanos adequados, não conseguiremos melhorar o atendimento. E a Constituição, em seu artigo 200, determina ser atribuição do SUS ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde.
Paulo: Concordo com a dra. Lenir. O Conselho Federal de Medicina poderia sugerir essa proposta ao MEC. É preciso regulamentar a residência. Acabou mesmo o médico de família, aquele de antigamente que cuidava de várias gerações de uma mesma família. E ele é necessário. O CFM deve poder, assim como a OAB faz em relação às faculdades de Direito, dar palpite na formação dos médicos, na mudança da estrutura curricular. Os estudantes e formandos têm interesse em abrir o seu campo de trabalho.
Ladislau: E a questão do financiamento, fundamental para garantir o direito à saúde?
Paulo: Quando se fala de financiamento, devemos, portanto, falar em economia. É preciso lembrar que existe a oficial e a paralela, no setor privado e no público. Ninguém presta conta de nada. Quem acompanha a aprovação dos orçamentos nos finais de ano? Onde está o dinheiro da Loteria Esportiva, que é arrecadado para a saúde? Nunca vi ninguém cobrar isso. Tem uma frase de prefeito do Interior que é verdade: “a saúde é questão de educação”. O povo deve ser preparado para entender o que é saúde. Acompanhar o que se passa nessa área. Questionar por que a ambulância comprada para levar os pacientes à Santa Casa está parada. Tem de ter funcionário fiscalizando tudo isso. Existe muito desperdício.
O sistema público tem de fazer
promoção e proteção da saúde
Lenir: A saúde é um direito que, assim como o da educação, é extremamente oneroso. Ao contrário do setor industrial, os avanços tecnológicos, na saúde, aumentam os gastos ainda mais porque uma tecnologia não substitui totalmente outra. A tomografia, por exemplo, não eliminou o raio-X. O sistema público tem de ter a coragem para fazer o cálculo do custo-benefício e não incorporar tudo aquilo que está surgindo, apesar da pressão enorme das empresas de tecnologia. O financiamento privado, no Brasil, é maior que o público, e nenhum país consegue sustentar um sistema universal desse modo. O público tem de fazer promoção, proteção, e muitas outras coisas, diferentemente da medicina paga que só faz a parte curativa. Temos três graves problemas na saúde: o financiamento, a gestão e a formação dos recursos humanos. A gestão pública precisa ser mais moderna e mais ágil, pois lidamos com urgências e emergências o tempo todo. O financiamento precisa ser melhorado, e a formação de recursos humanos, voltada para as necessidades do SUS, e não somente para o mercado liberal.
Ladislau: Agradecemos a presença dos senhores neste debate, colaborando com importantes esclarecimentos a respeito de um tema tão essencial para a população brasileira, em geral, e para os médicos, que é o direito à saúde.
Fotos: Osmar Bustos