CAPA
EDITORIAL (pág.1)
Ponto de Partida - Novo Código de Ética Médica reafirma o respeito ao ser humano
ENTREVISTA (pág. 4)
Uma conversa com o introdutor do ensino de Nutrologia nas escolas médicas do país
EM DEBATE (pág. 9)
Abortamento espontâneo: entender porque ocorre reduz o estresse associado à perda
CRÔNICA (pág. 12)
Ruy Castro e a biografia que escreveu sobre a "pequena notável"...
SAÚDE NO MUNDO (pág. 14)
O sistema de saúde português garante a melhoria significativa de saúde da população
AMBIENTE (pág. 18)
Conheça a rede mundial Saúde Sem Dano: mais de 50 países participam
SINTONIA (pág. 21)
Indústria de alimentos deve estimular o consumo de produtos saudáveis
EM FOCO (pág. 23)
Forças Armadas do Brasil e Força Expedicionária Brasileira
GIRAMUNDO (pág. 26)
Curiosidades da ciência e da história
PONTO COM (pág. 28)
Canal de atualização com as novidades do mundo digital
HISTÓRIA (pág.30)
A assepsia das mãos na prática médica
GOURMET (pág. 33)
Acompanhe a preparação de uma receita especial para a macarronada do domingo...
CULTURA (pág. 36)
Tide Hellmeister: artista de técnicas variadas, deixou obras expostas no Cremesp
TURISMO (pág. 40)
Registro de um passeio inesquecível pelos vilarejos franceses
CABECEIRA (pág. 46)
Confira as sugestões de leitura do médico cardiologista Adib Jatene
CARTAS (pág. 47)
Versões digitais do JC e da SM facilitam acesso e leitura
POESIA(pág. 48)
Explicación, de Pablo Neruda, no livro Barcarola (1967)
GALERIA DE FOTOS
CRÔNICA (pág. 12)
Ruy Castro e a biografia que escreveu sobre a "pequena notável"...
De como Carmen Miranda me salvou a vida
Com uma pequena ajuda dos médicos, claro...
Aconteceu outro dia. A meu pedido, um repórter foi entrevistar o dr. Jacob Kligerman, autoridade em cabeça e pescoço e um dos cirurgiões mais respeitados do Brasil. A matéria era sobre alguém que enfrentara um tumor brabo – no caso, eu, de base de língua – e, graças aos médicos, vivera para contar a história. Como não faço segredo dessas coisas, instruí o repórter a ouvir Jacob, um dos médicos que me trataram. Só não esperava a história que ele contaria rindo para o jornalista:
“Quando era dia de consulta do Ruy, eu dizia à secretária para marcar dois horários. Um, para eu tratar dele. O outro, para ele tratar de mim”.
Queria dizer que se empolgava com o estado de espírito com que eu entrava em seu consultório, talvez diferente de outros de seus clientes, a ponto de ser recebido por ele com frases como “Puxa, Ruy, ninguém te derruba, hein?”, ou coisa do gênero. E de como esse otimismo lhe fazia tão bem quanto a mim.
De fato, alguns meses antes, quando ele me passou o diagnóstico definitivo sobre a doença, meu único comentário para Heloisa Seixas, minha mulher, e para ele próprio foi: “Raios. Vou atrasar meu livro”.
Naquele dia, em fins de janeiro de 2005, eu estava finalmente começando a escrever o texto de Carmen – Uma biografia, sobre Carmen Miranda, e combinara entregar à Companhia das Letras em junho ou julho, o que permitiria sua confortável publicação em outubro ou novembro daquele ano. O processo de efetivamente escrever o livro culminava um trabalho de investigação e pesquisa que começara quatro anos antes e no qual eu ouvira cerca de 200 pessoas – várias vezes cada, num total de quase mil entrevistas – e que resultaria (embora ainda nem desconfiasse disso) num texto de nada menos que 2 milhões de caracteres.
A produção de uma biografia é um trabalho lento e minucioso, envolvendo a difícil localização das fontes de informações (muitas delas, homens e mulheres de idade avançada, sumidos há anos e não se sabe nem se continuam vivos), a captura desses dados (através de entrevistas com as tais fontes ou da leitura de toda espécie de documentos), sua organização em arquivos e, finalmente, o ato de escrever. De todos os quesitos, o mais fácil é esse último, mais não o menos penoso – porque exige dedicação integral, grande dose de concentração e, de preferência, uma cabeça inteiramente voltada para o trabalho. Não é aconselhável começar a produzir o texto de uma biografia quando se é obrigado a sair de casa todos os dias para fazer radioterapia, uma vez por semana para se submeter a uma quimio e ainda há a perspectiva de uma longa cirurgia – a qual se confirmou. Tudo isso era o meu caso, mas eu não tinha escolha.
Desde o começo, eu não quis ter escolha. “Não vou perder tempo com esta doença”, eu disse a Heloisa e Jacob. “Vou cuidar do tratamento, e o ‘Carmen’ vai fazer parte dele”.
Não sou a pessoa mais indicada para descrever o que se passou nesse período. Só sei que aproveitei cada minuto na sala de espera da radiologia da clínica São Vicente, na Gávea e cada hora de aplicação de quimioterapia no Largo do Machado para ler originais, reler o texto escrito, canetá-lo, copidescá-lo, reorganizar as informações. E passava o maior número de horas por dia no computador, escrevendo, tudo isso enquanto tentava me alimentar apesar da dor horrível para engolir e do fato de que qualquer coisa que ingerisse tivesse gosto de carpete ou de cabo de guarda-chuva.
Heloisa não foi apenas minha companheira em tempo integral. Como escritora que também é, teve cabeça para anotar todos os duros passos que nos couberam naquele período. E resumiu tudo num texto para um livro, “Álbum de retratos”, que publicou pela editora Folha Seca:
“Entre o dia 28 de janeiro de 2005, dia do diagnóstico, e o 4 de outubro seguinte – dia em que Ruy pôs o ponto final em seu livro – foram 34 sessões de radioterapia, total de 93 irradiações, 7 sessões de quimioterapia, com 21 horas de aplicações, 29 consultas médicas, mais 15 consultas ao dentista, 5 biópsias, uma endoscopia, 5 exames de sangue, 2 ressonâncias magnéticas, 2 chapas de pulmão, um raio-X completo da boca, uma cirurgia com duas passagens pelo centro cirúrgico e seis dias de internação, mais 19 punções e 61 sessões de fisioterapia.” Seguem-se outras descrições que não me compete reproduzir, mas que descrevem com crueza a difícil realidade daquela situação.
Difícil, mas que podia ser enfrentada. Em nenhum momento tive medo de morrer – só de não terminar o livro. Carmen Miranda foi uma força inspiradora: eu não podia falhar diante de uma mulher tão forte e talentosa e, ao mesmo tempo, tão viva e esfuziante. Apesar da doença, tinha de estar à altura dela para escrever – e a maneira de fazer isto era combatendo a morte com a vida.
Daí as brincadeiras com Jacob ao chegar a seu consultório (e com os outros médicos também). O livro, muito atrasado, só ficou pronto no comecinho de dezembro e, mesmo assim, por uma façanha da Companhia das Letras, que só faltou parar com o resto de sua produção para conseguir lançá-lo antes do fim do ano.
Dr. Jacob foi a primeira pessoa a quem mandei o livro, no dia mesmo em que ele saiu da prensa. Uma semana depois, houve a noite de autógrafos, no Golden Room do Copacabana Palace, antigo reduto de Carmen. Sentado atrás de uma mesa, autografando sem parar, vislumbrei Jacob lá longe, no meio da fila, que parecia não avançar. Ele percebeu quando olhei para ele e soltou a tirada:
“Ruy, nunca te fiz esperar tanto na minha sala de espera!”
Quando finalmente chegou à mesa, abraçou-me comovido e comentou:
“Esse tratamento que você fez costuma levar um ano e, agora, ao ler o livro, vejo que ele também deveria levar um ano só para escrever. Mas você fez as duas no mesmo ano. Como conseguiu?”
“Porque você não me disse que era impossível”, respondi.
Um ano depois, “Carmen – Uma biografia” ganhou o prêmio Jabuti de melhor biografia e Livro do Ano na categoria não ficção. Dediquei esses prêmios aos médicos que me trataram. Nos anos seguintes e até hoje, continuei indo ao consultório de Jacob, para exames periódicos, a intervalos cada vez maiores. Mesmo que um dia ele me libere de vez, não quero deixar de visitá-lo. Temos grandes motivos em comum para continuar rindo.
*Ruy Castro é escritor