CAPA
EDITORIAL (SM pág.1)
Homenagem especial a José Aristodemo Pinotti
ENTREVISTA (SM pág. 4)
Professora da PUC analisa a vida em sociedade
CRÔNICA (SM pág. 8)
Texto de Tufik Bauab, presidente da Sociedade Paulista de Radiologia
PALAVRA (SM pág. 10)
Saúde e Educação devem ser prioritárias para crianças entre 0 e 6 anos
CONJUNTURA (SM pág. 14)
Neuroética. Ficção científica é passado longínquo...
EM FOCO (SM pág. 16)
"A pílula mudou o status da mulher e da abordagem de saúde" (Rodrigues de Lima)
ESPECIAL (SM pág. 20)
Novas posturas reafirmam nosso compromisso com a comunidade e o meio ambiente
DEBATE (SM pág. 22)
Especialistas da USP avaliam preservação ambiental e sustentabilidade
GIRAMUNDO (SM pág. 28)
Nova coluna estreia com temas interessantes e atuais
HISTÓRIA (SM pág. 30)
Movimentos populares transformaram o modelo de saúde pública no país
LIVRO (SM pág. 35)
Títulos de presença obrigatória em sua estante
CULTURA (SM pág. 36)
Batatais reúne acervo precioso do pintor paulista Cândido Portinari
TURISMO (SM pág. 42)
Ao sul de Minas, uma cidade imperdível para visitar, praticar esportes e descansar
CARTAS (SM pág. 46)
Comentários dos leitores sobre algumas matérias da edição anterior, nº 47
POESIA (SM pág. 48)
Olavo Bilac
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (SM pág. 4)
Professora da PUC analisa a vida em sociedade
DULCE CRITELLI
“Não temos projetos que não sejam os de natureza econômica”
Doutora em Filosofia e docente há mais de 35 anos, Dulce Critelli desenvolve a proposta de tornar esse campo do conhecimento em ferramenta para que as pessoas possam compreender e melhorar suas vidas. Seus estudos e projetos na área da filosofia existencial estão baseados nas ideias do filósofo Martin Heidegger e da pensadora Hannah Arendt.
Professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Dulce Critelli também é articulista do caderno “Equilíbrio” do jornal Folha de São Paulo e coordenadora do Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana – Existentia. Ela tem alguns livros sobre a temática da existência humana publicados, entre eles, Analítica do Sentido, Educação e Dominação Cultural e Todos Nós… Ninguém. Nesta entrevista, a professora fala de seu trabalho e de alguns aspectos da vida contemporânea em sociedade.
Ser: O que a levou a criar o Existentia e como a filosofia existencial pode atuar sobre os problemas concretos das pessoas?
Dulce: Frequentemente ouvia um ou outro aluno dizer que determinada aula o fez entender algo e a resolver um problema. Esses comentários me levaram a observar o poder da filosofia como ferramenta para o autoconhecimento. A maior compreensão do que acontece com o ser humano possibilita que a pessoa organize e dirija melhor a sua vida. O que parece ser uma problemática exclusiva, começa a ser diluída. Dentro da universidade, é impossível trabalhar com essa perspectiva não teórica. Não é tradição da filosofia resolver problemas concretos, mas, sim, debater as grandes questões. Por essa razão, o trabalho foi desenvolvido no Existentia.
No começo, trabalhava com o pensamento de Heidegger. Depois, foi introduzido o de Hannah Arendt – que não é filósofa e não tem preocupação com as questões pessoais, mas com a compreensão da questão política, associada à humana. Aquele conhecimento voltado para a política servia bem para as questões da condição humana. Sobretudo porque temos duas grandes questões das quais nunca fugimos: “quem sou eu?” e “qual é o sentido da vida?”. E, numa extensão dessas perguntas: “qual o sentido da vida e que sentido eu faço dela?” e “qual é o meu lugar dentro da vida?”.
Ser: O sentido da vida muda com o tempo?
Dulce: O tempo inteiro. As perguntas que nos fazemos todos os dias são: “o que vou fazer da vida?”, “que profissão vou escolher?” e “devo trabalhar menos para ter mais qualidade de vida?”. Essas perguntas dizem respeito ao sentido da vida e, muitas vezes, as respostas que damos a elas são organizadas pela sociedade. Uma delas afirma que a vida só tem sentido se você tiver muito dinheiro no banco e for uma pessoa conhecida. As respostas gerais mudam de acordo com as épocas, mas no dia a dia continuamos com essa problemática. Posso ter uma solução de manhã e outra, à tarde. E dependendo da resposta, abrir um caminho de felicidade ou de angústia.
Ser: Na sua linha de trabalho, a filosofia abre a possibilidade de se fazer terapia? É uma filosofia clínica?
Dulce: Não é. Toda vez que se usa a expressão clínica, pensa-se na doença. A questão do sentido da vida não é uma doença, é um problema da vida mesmo. Filosofia clínica é outra história, quem a faz tem outros pressupostos e pensadores que dão sustentação a essa linha de ação. Eu utilizo as idéias de pensadores existenciais, algo que a filosofia clínica não toca. Por exemplo, tenho um grupo de estudos formado por psicólogos, que busca recompreender o atendimento que prestam à luz do pensamento de Hannah Arendt. E desenvolvo algumas oficinas de exercícios para ajudar a pessoa a reconstruir e reescrever sua biografia. Essa linha de trabalho é curativa no sentido terapêutico. Terapia é uma palavra muito aberta e não é exclusiva da clínica. Segundo Jean-Yves Leloup, terapia tem origem na palavra grega therapéia, que era usada para se distinguir de yatreké – que representa os cuidados com o corpo realizados pela medicina. Já a therapéia se referia aos cuidados com a alma, o espírito ou a existência.
Ser: Há preconceito acadêmico com esse trabalho mais popular da filosofia?
Dulce: A Hannah Arendt se referia aos pensadores da academia como filósofos profissionais. E ela se recusou a participar desse grupo por causa da formalidade. Da mesma forma que o pensamento filosófico possui o compromisso de busca das causas primeiras, das grandes explicações de significados, ele não tem com o acontecimento atual. E esta é uma posição não só da academia, mas que vem junto com a tradição da filosofia, sobretudo a partir da modernidade. Na busca do sentido das coisas em sua vida, você pode até dialogar com a filosofia. Nesse contexto ela pode ocupar um lugar. Mas não a filosofia tradicional. Quem ocupa esse lugar, mais do que a filosofia, é o pensamento. Ou seja, o pensador, porque ele está livre e não precisa seguir dentro da camisa de força da ciência.
Ser: O mundo está mais refratário à filosofia?
Dulce: Posso estar errada, mas acho que a mídia é a grande responsável por um rebaixamento do pensamento das pessoas, por achar que todo mundo só quer ler entretenimento, dar risada e ficar na superficialidade. Existe um número grande de pessoas que quer refletir, repensar e abrir espaços para discutir a própria vida. E são poucos os filósofos ou os pensadores atuais que têm conexão com o que estamos vivendo. Poucas pessoas estão interessadas nisso.
Ser: Como professora, qual é a percepção que tem do jovem atual?
Dulce: Dou aulas desde 1973 e, a cada ano, os alunos apresentam mais dificuldade de aprendizado da língua e da escrita. Ler está se tornando algo muito difícil para eles, que estão acostumados a fazer corte e colagem na internet. Um grande número de garotos não faz mais o exercício de buscar o entendimento, de estabelecer relações e conexões nas ideias e textos lidos, de uso da lógica e da reflexão. Eles são chamados a ter um diploma para conseguir entrar no mercado de trabalho.
Ser: Mesmo no curso de filosofia?
Dulce: O perfil do aluno que procura um curso de graduação em filosofia mudou. Normalmente ele já possui uma profissão, tem mais idade e quer usar a filosofia para fazer uma complementação ou repensar a sua vida.
Ser: O que há por trás do fenômeno crescente de violência dos alunos contra escolas e professores?
Dulce: Eles também desrespeitam o pai, a mãe e qualquer pessoa que encontram na rua. Essa violência virou um estigma da camada mais pobre da população, mas também acontece nas escolas particulares. Ela tem relação com os valores aos quais somos convocados. Para que tipo de ação a juventude é chamada? Se você ligar a televisão ou for ao cinema, só encontrará filme de ação e de violência. O que se vê na televisão é ficção, mas parece muito com o mundo real, porque é possível. São pessoas como eu que estão ali, em circunstâncias que reconheço e com os mesmos problemas que posso ter.
E quais são os interesses da violência que se vê na televisão? São sempre o poder e o dinheiro que a justificam. A cultura ocidental contemporânea vive uma desvalorização da condição do indivíduo – ao mesmo tempo que reforça a vida individual, corta a possibilidade da ação em conjunto. Turma, bando não é um grupo. Milhares de garotos assistindo a uma banda de rock não é conjunto porque cada um está na sua, eles não têm uma atividade conjunta. E cada país acaba vivendo essa violência nos moldes e nas possibilidades de sua experiência. Vamos ouvir falar mais de skinheads na Inglaterra do que no Brasil. Nossas questões são outras: o crack, a favela. Os focos da violência variam, mas existem tanto no jovem da classe média, que mata os pais porque tem essa possibilidade aberta, como naquele que vive sob exclusão. Surpreende o fato de, todo dia, nós contarmos com a violência. A violência já nos pertence.
Ser: O jovem em situação de exclusão e o de classe média partilham os mesmos ideais?
Dulce: Aparentemente é diferente, mas no fundo todos têm a mesma convocação de ser uma pessoa reconhecida socialmente, com cartão de crédito, celular e roupa de grife. O jovem de classe média que está na universidade é convocado a ter sucesso e brilhar dessa maneira. O outro não tem acesso à universidade, mas quer brilhar do mesmo jeito e deseja os mesmos signos, então ele rouba o celular. Eles têm os mesmos interesses e cada um vai buscá-lo pelos seus meios.
E por que o consumo se mantém à tona há tanto tempo como uma condição básica da existência? Porque ele repete o ciclo biológico da vida. Se sentimos fome, comemos. Se eu for aumentando a quantidade de alimento, cada vez vou sentir mais fome. O consumo está no mesmo ritmo. Quanto mais se consome, mais falta possuir. O consumo torna os produtos obsoletos, lança modas diferentes a cada ano e cria interpretações do que deve ser consumido naquele momento. Esse esquema inesgotável é como o movimento da vida, o dia e a noite.
Ser: O consumo é próprio da ideologia capitalista? É aí que está o problema?
Dulce: Tanto o capitalismo quanto o socialismo estão estruturados sobre a produção de bens de consumo. No que eles divergem é quanto a quem pertence os bens de produção e a riqueza resultante. O problema é que não temos mais projetos que não sejam os de natureza econômica. Por mais que a família tenha outros valores, eles só podem ser viabilizados pelo mecanismo da economia. Eu quero dar a melhor escola para meu filho ter a chance de um bom emprego e melhor condição de vida. É sempre dentro da mesma perspectiva. Toda direita e esquerda está aprisionada nesse mesmo cinturão de ferro em volta do mundo. Não temos projetos para o ser humano. As plataformas de governo propõem algum projeto para o homem? Eles têm para o valor do salário mínimo e para o desemprego. Por mais que se possam discutir os métodos e o construtivismo, para que servem a escola e a educação? Para preparar mão-de-obra, trabalhadores. Enquanto essa for a finalidade última da sociedade, não temos escapatória.
Ser: Como que se distingue um filósofo de um professor de filosofia?
Dulce: Se quem faz psicologia é psicólogo; quem faz medicina é médico; por que aquele que estudou filosofia não é filósofo? São decisões pessoais que levam a pessoa a intitular um ou outro. Um professor de filosofia sabe lidar com os conteúdos da filosofia. A diferença é que um pensa e o outro pode ensinar filosofia sem pensar. Temos muito professores de filosofia que não sabem filosofar. Mas a melhor distinção não é apenas entre o filósofo e o professor de filosofia, ela deve incluir também o pensador. Na minha escolha, filósofos são Aristóteles e Heidegger. Já Hannah Arendt e Sartre são pensadores que têm presença na filosofia devido à originalidade do pensamento.