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Confira aspectos sobre o impacto da doação de órgãos em familiares
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SINTONIA
Confira aspectos sobre o impacto da doação de órgãos em familiares
Impacto da doação de órgãos em familiares
A oferta de órgãos de doadores falecidos não preenche a demanda atual em quase todos os países que realizam transplantes. Na América Latina, a taxa de potencial doador é de 40 a 100 por um milhão de habitantes ao ano (pmp/ano), similar a de países desenvolvidos. E a taxa de doadores falecidos no Brasil, em 2003, foi de 5,05 pmp/ano, demonstrando haver espaço para melhorias na área de captação. Um estudo com familiares de doadores de órgãos e tecidos avaliou os efeitos desse processo, procurando respostas que pudessem melhorar a captação no Brasil. As entrevistas com 69 familiares foram feitas dois anos após a doação, ocorrida no período de 2000 a 2001 na Organização de Procura de Órgãos (OPO) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Dos familiares que participaram do estudo, 55% eram homens e 45% mulheres, com idade média de 42,7 anos. A escolaridade da maioria (39,7%) era de nível fundamental, sendo 2,9% analfabetos. Eram assalariados 52,2% dos familiares – 41,3% destes com renda de um a três salários mínimos e 28% com mais de seis salários. Porém, 59,4% das famílias estavam desempregadas no momento da doação. A maioria era católica, mas 91,2% declararam que a religião não interferiu na decisão.
Conheciam o desejo prévio de doação do falecido 63,2% dos familiares – e destes, 90,5% declararam que esta ciência foi importante na tomada de decisão. Após essa experiência, 79,4% responderam que doariam novamente órgãos e tecidos de parentes.
Para 53,6%, o tempo de liberação do corpo foi classificado como um aspecto negativo do processo. Quando esse tempo esteve associado à morte em decorrência de causa externa, que demanda exame médico no Instituto Médico Legal (IML), o cunho negativo das respostas teve um porcentual maior (84,2%).
As decisões, favoráveis ou desfavoráveis à doação, transformam a relação da sociedade com o tema porque a morte passa a representar um novo paradigma sobre o valor do corpo – uma vez que, por meio da doação, é possível salvar ou aumentar a sobrevida de doentes. O respeito conferido ao corpo do morto é característico de todos os códigos morais seculares e de crenças religiosas – representa a memória da vida passada que deveria ser guardada tão próxima quanto possível. A falta de informações corretas, aliadas ao baixo nível de escolaridade dos familiares, pode gerar interpretações fantasiosas a respeito de como será devolvido o corpo e sobre a distribuição eqüitativa dos órgãos. Essas interpretações podem causar desconforto ou arrependimento pela decisão. Quando as equipes ou membros das organizações de procura de órgãos despendem mais tempo discutindo os aspectos da doação e transplante com as famílias, aumenta significativamente o consentimento.
O acompanhamento do corpo pós-doação, como solicitam as famílias, deve ser parte integrante da prática assistencial. A apropriação do corpo sem previsão para devolução à família e as dificuldades em visitá-lo nesse período alteram profundamente os hábitos e rituais religiosos que marcarão a despedida do familiar. A avaliação dos familiares em relação ao tempo de permanência no IML foi negativa independente da região de procedência. As negativas podem embutir aspectos determinantes para que os familiares que vivenciaram o processo tornem-se agentes multiplicadores desfavoráveis à doação.
Confirmando outros estudos, esta pesquisa também evidenciou a confirmação de que as variáveis sociodemográficas poderiam interferir em nova decisão. Aqueles com renda entre quatro e seis salários mínimos têm aproximadamente 7,25 vezes mais chances de fazer nova doação de córnea quando comparados com aqueles que têm renda de até três salários mínimos. Foi observada, ainda, que a cada ano de aumento de idade do parente de doador, cai em 7% as chances de se fazer nova doação de córnea.
Fizeram uso do benefício auxílio-funerário oferecido pela Prefeitura de São Paulo 63,2% das famílias – mas a maioria, 97%, concorda com esse benefício. Dos que se utilizaram dele, 92,5% consideram o benefício importante. A análise estatística de associação entre as varíaveis aponta que o auxílio é determinante para uma nova doação.
A análise mais detalhada das falas dos familiares coloca em cheque o argumento de que a doação de órgãos de pessoas falecidas é um ato de altruísmo, como observa a maioria das publicações. O ato de doação altruística é sustentado no desprendimento, na incondicionalidade e na renúncia, constituindo-se atitude emocionalmente gratificante para seu autor. Assim, a doação pode ser considerada um ato solidário do familiar mas não altruísta. Os benefícios indiretos como o custeio às despesas de funeral ou outras formas de compensar a família por esse ato, podem interferir na decisão baseada apenas na virtude social.
Essa interpretação ganha força quando verificamos que os familiares manifestaram o desejo de saber se os receptores estão bem – 97% solicitam informações sobre o órgão doado e o receptor, como se pudessem ter uma compensação pela perda do ente querido na continuidade da vida em outro.
O argumento de ato de altruísmo para a doação de órgãos e tecidos é um referencial para os profissionais de saúde, mas existe uma motivação baseada no desejo da continuidade da vida de seu familiar no outro. Estudo recente sobre altruísmo e incentivos traz a observação de que a única não beneficiada no transplante é a família do doador, portanto, o incentivo financeiro o tornaria mais eqüitativo. Em geral, os profissionais de saúde rejeitam terminantemente essa idéia – alguns não o consideram ético, outros alegam que não querem estar na posição de oferecer incentivo às famílias, pois minaria a relação de confiança, desencorajando a doação. Para estes, o incentivo direto (monetário) parece um suborno, enquanto o indireto (como o auxílio-funerário, por exemplo) parece uma recompensa da sociedade pelo gesto da doação.
Não há consenso sobre como e onde traçar limites entre a promoção ou não de incentivos financeiros na doação de órgãos. Mas, a simples expansão desse tipo de abordagem nos últimos 15 anos exige uma revisão no Guia de Princípios para Transplante de Órgãos Humanos adotado pela Assembléia Mundial de Saúde desde 1991. O tempo de permanência no IML, apontado pela maioria dos familiares como um aspecto negativo, é outra questão que precisa ser revista no contexto da doação. Há necessidade de ajustar a atuação dos profissionais em relação ao processo e, assim, contribuir para o aumento das taxas de doação no país. Adicionalmente, no Brasil, faltam estudos que esclareçam os aspectos relacionados à doação com objetivo de diminuir a recusa familiar.
*Bartira de Aguiar Roza é enfermeira master do Hospital Israelita Albert Einstein, doutora em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo - Unifesp
**Janine Schirmer é professora livre-docente do Departamento de Enfermagem da Unifesp
***José Osmar Medina Pestana é professor livre-docente do Departamento de Nefrologia da Unifesp