

CAPA

PONTO DE PARTIDA
Editorial de Isac Jorge Filho: Pequenas Mudanças

POESIA
Miguel Carlos Vitalino, escritor e médico pneumologista

ENTREVISTA
A psiquiatra Carmita Abdo é a convidada especial desta edição

CRÔNICA
Ser filho de médico - José Simão

SINTONIA
Gravidez na adolescência

CONJUNTURA
Medicina Esportiva

DEBATE
Reprodução assistida para portadores de HIV

MEIO AMBIENTE
Compostos químicos e a saúde

COM A PALAVRA
A inveja não é só ruim - Carlos Amadeu Botelho Byington

HOBBY DE MÉDICO
Xadrez - No tabuleiro do doutor

HISTÓRIA DA MEDICINA
Tempo de criação 1951-1956

TURISMO
São Luiz do Paraitinga - Histórica, caipira e festeira

CULTURA
Corpos Pintados: mostra já percorreu 32 museus do mundo

CARTAS & NOTAS
Novo projeto gráfico da sua revista

LIVRO DE CABECEIRA
A Viagem Vertical - Enrique Vila-Matas

GALERIA DE FOTOS

COM A PALAVRA
A inveja não é só ruim - Carlos Amadeu Botelho Byington
A inveja não é só ruim
* Carlos Amadeu Botelho Byington
Jung baseou sua psicologia nos arquétipos, comuns a todos os seres humanos. Eles são equivalentes aos instintos e se expressam por imagens típicas presentes nas mitologias. Todas as culturas têm representações arquetípicas de deusas, deuses, heróis, sábios, bruxas, demônios, crianças milagreiras, profetas, fadas e duendes. Todas se apresentam em polaridades, podendo ser boas ou más.
Como toda escolha profissional baseada na vocação, sempre cultivei a admiração pela figura dos grandes médicos, especialmente quando aliam a competência à compaixão pelos doentes.
Minha formação como psiquiatra e analista junguiano nunca substituiu meu apreço pela Medicina clínica e, por isso, sempre procurei embasar, tanto quanto possível, os conceitos psicológicos na neurofisiologia. No entanto, com a aquisição progressiva da experiência médica, encontrei uma enorme limitação que dificulta, ao mesmo tempo, a relação humana médico-paciente e o embasamento neurofisiológico da Psicologia. Trata-se da famosa, para não dizer famigerada, dissociação mente-corpo, que separou gravemente as polaridades na clínica.
Essa dissociação surgiu, na história do Ocidente, no final do Iluminismo dos séculos 17 e 18, quando a ciência assumiu o poder na universidade. Os grandes gênios, que lançaram as bases das ciências modernas, eram todos, sem exceção, religiosos. Suas descobertas científicas em nada diminuíam sua fé, pelo contrário, pois contribuíam para engrandecer a maravilha que sentiam ser a criação do Universo e da vida na Terra. De fato, Copérnico, Galileo, Kepler, Descartes, Newton e Leibnitz situaram suas descobertas naturalmente como contribuições à maior glória de Deus.
No entanto, o dogmatismo intole-rante da Inquisição afrontou cada vez mais a comunidade científica. A necessidade de permissão do Santo Ofício para qualquer publicação, o temido “imprima-se” (imprimatur), por si só já era uma humilhação permanente para os pesquisadores, mas a perseguição ia muito além.
A comunidade científica era pequena no Renascimento, mas muito unida e bem informada, em função da avidez pelas novas descobertas. Imagine-se o que foi para estes cientistas receberem a notícia que Galileo, o seu príncipe, havia sido condenado à prisão domiciliar pela Inquisição e obrigado a ajoelhar-se, em Roma, diante de cinco cardeais, para renegar a teoria heliocêntrica, por não ter sido ela considerada compatível com as escrituras! E também que seu conhecidíssimo conterrâneo Giordano Bruno, célebre por suas conferências nos grandes centros culturais da Europa, havia sido condenado por heresia, torturado e queimado vivo em público no centro de Roma, em 1600. E que o grande Descartes, temendo a perseguição em Paris, havia se refugiado na Suécia, e, tendo que madrugar e caminhar um percurso na neve para ensinar filosofia à rainha Cristina, havia contraído pneumonia e morrido?
Esses são apenas três exemplos para ilustrar o medo, a coação, a revolta e a indignação que permeavam a comunidade científica quando os enciclopedistas Voltaire, Diderot e D'Alembert lideraram o Iluminismo e, inspirados na Revolução Inglesa, desencadearam o ataque à repressão, que culminou na Revolução Francesa e no coroamento da razão. Foi nesse contexto que a ciência tomou o poder na Universidade e dela expulsou a religião.
Infelizmente, junto com a água suja do banho foi-se também o coração da criança, deixando a Universi-dade iluminada pela razão e ressecada pela ausência da emoção. A dissociação foi tão intensa e extensa que culminou separando o subjetivo do objetivo. Esse afastamento absoluto entre ciência e religião, razão e fé, originado no repúdio a séculos de opressão pela Inquisição, dissociou a razão e a sensação, do sentimento, da intuição, da ética e da vivência emocional de totalidade, que caracterizam a dimensão religiosa. O método científico elegeu o objetivo e o racional como paradigmas da verdade e identificou o subjetivo com a intolerância, o dogmatismo e o erro. Descartes havia separado a res cogitans, o pensamento, da res extensa, a natureza, para bem pensar, mas, em momento algum, havia invalidado o corpo como expressão da alma.
A dissociação subjetivo-objetivo, que passou a orientar a Ciência dentro da visão de mundo materialista do século 19, foi a grande responsável pela cisão razão-emoção e mente-corpo, que prevaleceu na medicina nos séculos 19 e 20. Sofrem com isso o paciente, o médico e a própria ciência médica, pois é cada vez mais inegável que os fatores subjetivos e objetivos, emocionais e orgânicos são inseparáveis na sintomatologia e no tratamento dentro da relação médico-paciente. A falta de estudo científico do subjetivo e, por conseguinte, das emoções, deixou muitas delas estigmatizadas como más dentro dos pecados capitais, dentre os quais, a sensualidade, a agressividade e a inveja foram as mais atingidas.
A verdade é como a chuva que desce da montanha criando caminhos particulares para ultrapassar os obstáculos que a cercam. Assim aconteceu que o próprio desenvolvimento das neurociências descobriu os neurotransmissores, que expressam a química e a emoção nas neurosinapses. Daí em diante, querer separar a psicologia das emoções da clínica, e a mente do corpo, passou a ser incompatível com o conhecimento científico.
No campo da psicologia simbólica junguiana, essa descoberta das neurociências permite conceituar o símbolo e a função estruturante como representação psíquica dos arquétipos. Sob essa perspectiva, tudo é símbolo e função estruturante empregado pelos arquétipos para formar a consciência. O temor de uma doença é um símbolo dentro da função estruturante do medo, que motiva um paciente a procurar o médico. A dispnéia é um símbolo dentro da função estruturante da respiração. O ódio a alguém é um símbolo dentro da função estruturante da agressividade. Não é preciso dizer que todos os símbolos e funções estruturantes abrigam componentes emocionais e objetivos, o que engloba sempre a dualidade mente-corpo numa unidade inseparável.
Defesas inconscientes
Seguindo a descoberta genial de Freud, de que o desenvolvimento normal sofre fixações que passam a ser expressas inconscientemente por defesas, podemos conceber que os símbolos e funções estruturantes fluem normalmente ou sofrem fixações, que os tornam patológicos e expressos por defesas inconscientes. Ao sentir dispnéia e taquicardia, uma pessoa pode estar normalmente ofegante, ou ter um problema cardio-respiratório que precisa tratar. Se for este o caso, sua função cardio-respiratória estará fixada numa defesa que, para ela, é desconhecida e inconsciente, e que somente o médico lhe poderá ajudar a descobrir e tratar.
Esta bipolaridade do subjetivo e do objetivo, da doença e da saúde, do consciente e do inconsciente estende-se também ao Bem e ao Mal na dimensão ética dos símbolos e funções estruturantes, através dos quais podemos perceber a combinação das polaridades em proporções variáveis em tudo o que fazemos na vida.
A inveja, como função estruturante, forma a consciência com a vontade de ter o que os outros já possuem. Através da inveja conscientizamos o nosso desejo, o que é um importante estímulo para buscarmos crescer e conquistar. Por ser uma função estruturante tão importante no desenvolvimento da cultura, a inveja é também muito desestabilizadora e, por isso, foi sempre temida, cerceada e considerada má pelos partidários da manutenção do status quo. Isso aconteceu no mito da gênese, no conceito de pecado original e na psicanálise, onde ela foi até mesmo equiparada ao instinto de morte por Melanie Klein.
Para ilustrar como a inveja pode ser boa ou má, analisemos a relação entre os músicos Mozart e Salieri, tão bem representada no célebre filme Amadeus. Salieri confessou, no final de sua vida, ter assassinado Mozart, a quem sempre invejou. Interpreto que a inveja de Salieri era inicialmente positiva, devido ao seu extraordinário talento musical que ele vivenciara em Mozart. Sua inveja tornou-se destrutiva por ter ele feito concessões visando sua ascensão social na corte de Viena, o que lhe levou a competir e a atacar Mozart e a não investir sua inveja no desenvolvimento do seu próprio potencial criativo. A inveja, como todas as demais funções estruturantes, pode ser boa ou má, criativa ou defensiva, dependendo do que fazemos com ela. Seguindo criativamente nossa inveja, nós nos conhecemos e nos realizamos. Deixando de segui-la e usando-a para atacar os outros que a motivam, a tornamos destrutiva e somos por ela envenenados na estagnação.
* Carlos Amadeu Botelho Byington é psiquiatra e analista junguiano, autor do livro Inveja Criativa - O Resgate de uma Força Transformadora da Civilização,W11 Editores, 2002.