CAPA
PONTO DE PARTIDA
A classe médica, sensibilizada com a tragédia ocorrida na Ásia em janeiro, ofereceu pronta ajuda às vítimas do tsunami
ENTREVISTA
Silvia Brandalise - Centro Infantil Boldrini
CRÔNICA
Ricardo Freire - Médica de família
SINTONIA
Márcia Rocha Monteiro
CONJUNTURA
Renato Ferreira da Silva e o aumento no número de transplantes no Brasil
BIOÉTICA
Em debate a escolha do sexo dos bebês por métodos de reprodução assistida
POLÍTICA DE SAÚDE
Henrique S. Francé e o Programa de Saúde da Família
COM A PALAVRA
Marivânia Santos: o exercício da Medicina numa plataforma móvel da Petrobrás
MÉDICO EM FOCO
Michel Jamra, o médico que transformou a Hematologia em disciplina na Universidade
HISTÓRIA DA MEDICINA
O bastão de Asclépio, símbolo da Medicina
GOURMET
Bacalhau de Paellera, de Ivan Guidolin Veiga
CULTURA
O Museu da Loucura de Barbacena retrata primeiro Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais
LIVRO DE CABECEIRA
O destaque desta edição é "Status Syndrome", de Michael Marmot
GALERIA DE FOTOS
BIOÉTICA
Em debate a escolha do sexo dos bebês por métodos de reprodução assistida
Bebês sob medida
Centros médicos de praticamente todo o mundo aplicam as técnicas de reprodução assistida disponíveis atualmente. Pesquisas apontam que um em cada seis casais em idade fértil tenha problemas para gerar filhos. Além deles, homens vasectomizados e mulheres submetidas à ligadura de trompas ou que deixaram para engravidar após os 35 anos, são outros potenciais candidatos à utilização da reprodução assistida.
Os avanços da Medicina, em especial da genética, possibilitam atualmente o exame do embrião para detectar doenças. Muitas vezes, os pais utilizam-se desses exames para escolher o sexo do filho que desejam ter. O diagnóstico genético pré-implantacional, utilizado na fertilização in vitro permite identificar nos óvulos fertilizados, o cromossomo Y, masculino, e o X, feminino, possibilitando a escolha daqueles que serão implantados no útero.
No Brasil, a Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, proíbe a aplicação de técnicas de reprodução assistida com o objetivo de “selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer”. Entre os casais com risco de doenças genéticas que só afetam o sexo masculino, estão, por exemplo, os que têm casos de hemofilia ou distrofia de Duchenne na família.
Em alguns países, a escolha do sexo do bebê é praticada por vazio legal ou como experimento para aprimorar a técnica ou, ainda, à margem da lei. A eles recorrem casais que podem viajar grandes distâncias ou gastar fortunas para gerar seus filhos. Dos bebês que nascem no mundo, em média 51% são meninos e 49%, meninas. Mas morrem mais meninos no nascimento, resultando num equilíbrio entre os sexos.
A Inglaterra, a exemplo de muitos países europeus, proíbe a seleção de embriões apenas para definir o sexo do bebê. Mas a publicação “Choice of baby sex” (Lancet – Statham et al) apresenta uma pesquisa feita com cerca de 2.300 grávidas da Grã-Bretanha em 1993 para saber se preferiam menino, menina ou se o sexo era indiferente. Segundo os resultados, não haveria desequilíbrio de gêneros caso a população pudesse escolher o sexo do bebê.
A revista Newsweek, do grupo Washington Post, publicou uma ampla matéria sobre o assunto na edição de 26 de janeiro de 2004, assinada por Claudia Kalb. Conta, entre outros, a história de um casal que tinha três filhos e queria uma filha. O casal encontrou, durante uma busca na Internet, o Instituto de Fertilidade de Los Angeles, chefiado pelo médico Jeffrey Steinberg. Ao criar embriões fora do útero, o instituto conseguia garantir, com quase 100% de certeza, o sexo do bebê. Preço: 18.480 dólares mais viagem. A clínica de Steinberg, que tem consultório no México, já estava próxima da centésima seleção de sexo na época da reportagem. Um terço delas praticada em casais que viajaram de Hong Kong, Egito e Alemanha. Em apenas seis meses, a clínica de Steinberg recebeu 85 mil visitantes. Segundo a reportagem há uma crescente demanda por essa técnica, “as pessoas interrogam os médicos e visitam sugestivos sites na internet como o www.choosethesexofyourbaby.com e www.myboyorgirl.com, muitos deles oferecendo garantia de reembolso em caso de insucesso”.
“Nos Estados Unidos, a direita religiosa, que se opõe ao aborto e praticamente a qualquer outra coisa que altere a reprodução, exerce uma pressão contínua por novas leis. (...) A Comissão sobre Bioética da presidência dos EUA discutiu propostas de uma possível legislação que proibisse a compra e venda de embriões humanos. Embora as atuais recomendações da comissão não coloquem limitações à FIV ou à escolha do sexo, os objetivos são claros: o governo deve reprimir antes da tecnologia ir longe demais. ‘Embora as pessoas tenham grandes divergências de opinião sobre algumas questões’, diz o presidente da comissão e respeitado bioético Leon Kass, ‘todos nós temos uma responsabilidade em manter humana a reprodução humana”’, atesta a reportagem da Newsweek.
Muitas sociedades do planeta privilegiam o nascimento de meninos, entre elas dois países dos mais populosos do mundo: China e Índia. Na China, o número de nascimentos do sexo masculino cresce desproporcionalmente, devido ao aborto seletivo que, embora seja proibido por lei, é praticado em larga escala, já que a maioria dos casais só tem um filho e prefere os meninos. No país nascem 117 meninos para cada 100 meninas. A China é o maior paradoxo do planejamento familiar do mundo: nas décadas de 60 e 70 o governo incentivava os casais a terem muitos filhos para tornar a nação forte. Hoje aplica multas e várias restrições àqueles que têm mais de um filho.
“Na Índia é ilegal utilizar ecografias ou amniocentese para determinar o sexo dos fetos, por receio de que os femininos sejam abortados, mas, como na China, a lei não é o problema e sim as atitudes da sociedade. A tecnologia de selecão de sexo que é mais perigosa – e que está desvirtuando as percentagens dos sexos nas duas maiores populações asiáticas – é simplesmente o infanticídio feminino”, diz a reportagem da Newsweek.
Com o intuito de promover o debate sobre a questão, Ser Médico entrevistou seis representantes da sociedade brasileira fazendo uma única pergunta: quais são as implicações da escolha do sexo do bebê por métodos de reprodução assistida? Veja as respostas seguir:
Ladeira escorregadia
“Sou absolutamente contra a determinação de sexos para bebês, a menos que existam justificativas clínicas, médicas como, para exemplificar, em casos de hemofilia. O argumento no qual a Bioética se sustenta para defender esta posição é o da ‘ladeira escorregadia’. Abre-se precedente com um caso e outros irão acontecendo. Então, creio que o CFM deveria ser rigoroso neste sentido, pois alguns especialistas em reprodução assistida que começam a inserir esta “receita” nas suas pautas reprodutivas por simples “desejos dos pais em ter um filho de determinado sexo”, estão brincando – sem procuração da humanidade – com o equilíbrio demográfico entre sexos no futuro.”
Volnei Garrafa - Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, Professor titular da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB) e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética.
Avanço e retrocesso
“Temos a impressão de que enquanto a genética caminha a passos largos, a compreensão humana quanto ao que venha a ser a manipulação e o uso sadio daquela retrocede na mesma velocidade. Isso porque ao invés de o progresso da ciência estar sendo usado como um instrumento para se dizimar doenças, preocupa-se, antes de mais nada, em se obter bebês sob medida. Se hoje a questão é a escolha do sexo da criança, amanhã será a cor do cabelo, dos olhos etc.
A Resolução CFM nº 1.358/92 traz uma recomendação de como se deva proceder nesses casos. Em seu artigo 4º, a norma prevê: ‘técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer’.
O Conselho Federal contempla uma solução inequívoca para o problema da escolha do sexo do futuro filho. Porém, não se limita a expurgar somente a discriminação em razão do sexo. Além de não recomendar a escolha do sexo, também não vê com bons olhos a possibilidade de escolha de “qualquer outra característica biológica do futuro filho”, salvo se a escolha tiver por finalidade evitar-se alguma doença ligada ao sexo, ocasião em que ela poderá ser exercida. Enfim, essa postura revela uma preocupação legítima de coibir-se a utilização da medicina como instrumento de toda e qualquer forma de discriminação.”
Erickson Gavazza Marques - Presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/SP e Membro da Sociedade Brasileira de Bioética.
Autonomia
“Como ginecologista, humanista e voltado à área de Bioética, apesar de não trabalhar especificamente com reprodução assistida, acredito que não nos acostumamos a viver numa sociedade pluralista com opiniões diversas e na qual a questão da maternidade repousa basicamente em uma decisão bastante individual da mulher. Entendo que se um casal que resolva ou necessite fazer reprodução assistida, e já tenha dois ou três filhos de um mesmo sexo, e deseje ter um filho do sexo oposto, que isso seja possibilitado. Em determinadas circunstâncias – analisando os anseios da mulher que vai gestar, já que haverá um número excedente de embriões e existe a possibilidade de determinar o sexo – por que não implantar só os que são do sexo desejado pelo casal?
É necessário conversar com o casal e esclarecer todas as implicações desse procedimento, pois os exames de determinação de sexo podem dificultar o sucesso da reprodução assistida. Prefiro a visão que trabalha lado a lado com o paciente, penso que é mais igualitário discutir as opções, dentro de um princípio muito claro na Bioética que é o da autonomia. Não cabe ao profissional definir as opções, acho mais justo e equânime dar as opções e o paciente definir qual é a melhor.”
Thomaz Rafael Gollop - Ginecologista e Geneticista, livre-docente em genética médica pela Universidade de São Paulo e diretor do Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana de São Paulo.
Interferência descabida
“Sou plenamente a favor da reprodução assistida para casais que não conseguem gerar um filho pelos métodos naturais. No entanto, apro-veitar esse recurso da medicina moderna para escolher o sexo do bebê é, a meu ver, uma interferência descabida nos planos divinos. No que tange às implicações, não creio que a escolha do sexo crie problemas para a criança. Poderia criar um problema para a sociedade brasileira se o processo se generalizasse e se houvesse uma preferência acentuada por um dos sexos. Nesse caso, a longo prazo, causaria um desequilíbrio demográfico entre homens e mulheres. Mas, por enquanto, esse é um risco apenas hipotético. A implicação mais imediata, na minha opinião, é o problema psicológico da mãe e dos médicos, ou seja, o arrependimento que podem sentir após o fato consumado, sabendo que a escolha do sexo só foi possível pela eliminação de embriões do sexo oposto.”
Rabino Henry Sobel - Presidente do Rabinato Congregação Israelita Paulista
Critérios de seleção
“Não vejo o tema da escolha de sexo como um problema ético no Brasil tal como ocorre em países orientais, a exemplo da China e da Índia. No Brasil, esta é uma possibilidade restrita a casais em tratamento de reprodução assistida e, segundo os relatos de casos em que esta escolha foi realizada, os critérios de seleção pautaram-se em preferências individuais ou familiares e não em valores culturais de desigualdade de gênero. A situação clássica é a de um casal que deseja balancear o número de filhas e filhos. Não é como em algumas sociedades onde há uma explícita preferência cultural por meninos em detrimento das meninas. Considerando o atual horizonte cultural e social brasileiro, não vejo qualquer problema na possibilidade da escolha do sexo do futuro bebê, em especial em situações onde se precisa escolher alguns embriões em detrimento de outros.”
Débora Diniz - Doutora em Antropologia e professora da Universidade de Brasília. Atualmente, do Conselho Diretor da International Association of Bioethics e da Feminist Approaches to Bioethics Network.
Dignidade da procriação
“A seleção do sexo do bebê – sexagem – é uma das questões mais controvertidas a que nos expõe o desenvolvimento da biogenética. Divide opiniões e é enganoso pensar que as posições liberais estão do lado dos cientistas, ou ver as posições conservadoras como deriváveis da consciência religiosa. Mesmo os liberais apontam problemas quanto à técnica utilizada na sexagem, devido aos riscos de complicações, desequilíbrio na população de homens e mulheres, discriminação contra a mulher.
Há motivos também de ordem religiosa: a suspeita de que o ser humano, ao assumir o papel de Deus ou da natureza, não produzirá um mundo melhor. Há, certamente, na base da desconfiança, um medo em relação aos desdobramentos desse novo poder: se podemos escolher o sexo, podemos também pensar na liberdade de escolher outras características.
A questão é: até que ponto o poder técnico é também ético? Certamente não devemos condenar a técnica quando ela responde a uma finalidade eticamente defensável. Condena-se a técnica quando a motivação é um mero desejo ou capricho, mas não se condena quando há razões fortes como evitar doenças ou quando a fertilização in vitro é apontada como a única alternativa para a gravidez. Nesse caso a escolha do sexo é uma possibilidade, digamos “colateral” do procedimento. De um ponto de vista católico, o problema ético central reside no fato de que as técnicas de reprodução assistida podem favorecer uma reprodução despersonalizada, desumanizada, substituída por um tecnicismo que obscurece o contexto de significados da reprodução enquanto gesto final de um processo afetivo. Aqui também não se condena a técnica da inseminação artificial quando ela propicia a reprodução. O critério moral que fundamenta as escolhas é sempre o da dignidade da procriação.”
João Batistiolle - Professor de Bioética e de Introdução ao Pensamento Teológico, do Departamento de Teologia e Ciências da religião, da PUC-SP.