A imunização corresponde a uma das maiores conquistas históricas e científicas em saúde pública, contendo, por décadas, doenças responsáveis pela morte de milhares de pessoas no mundo, como varíola, sarampo e poliomielite. No entanto, volta e meia aparecem grupos movidos por confusões e informações equivocadas, que defendem o direito de não vacinar, abrindo as portas para surtos e arriscando suas próprias crianças. São representantes de classes sociais e níveis educacionais elevados, que, por vezes, contam com o incentivo de médicos.
Essa tendência foi verificada há alguns anos, por pesquisa qualitativa financiada pelo próprio MS, que mostrou que capitais, como São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Florianópolis e Recife, apresentaram coberturas menores para algumas vacinas no chamado estrato A, que agrega famílias com melhores condições socioeconômicas e educacionais. O estudo será reavaliado em 2015.
De acordo com o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (MS), Jarbas Barbosa, “isso só pode ser explicado pela mística de que boas condições de vida impedem doenças infecciosas”, incentivada por rumores de internet, que também exageram efeitos adversos dos imunizantes. Vai mais longe o bioeticista Arthur Caplan, da Universidade de Nova Iorque: como disse ao Jornal do Cremesp, tal decisão vem da “combinação de ignorância, falta de bom senso e de compreensão sobre reais riscos de contrair doenças graves por meio de viagens, creches e trabalhadores não vacinados que acessam suas casas e escolas etc”.
Essas atitudes, somadas à pouca convivência de algumas gerações com infecções graves controladas pelas vacinas – grande contradição – ateiam fagulhas em uma cobertura vacinal abrangente e eficiente, como é a brasileira, que supera 80% em crianças de até 18 meses.
Tendência tímida, mas perigosa
Barbosa lamenta o fato de que uma minoria de pediatras, de outras orientações filosóficas, recomende imunização seletiva ou a não vacinação. Reforça, porém, que no Brasil não há um movimento organizado antivacinas, como em certos países.
Na Europa e, em especial, nos Estados Unidos, grupos radicais, como o Vaccine Resistance Movement, conclamam a população a “expor fraudes relativas à vacinação” e a preparar-se para “promover ações judiciais coletivas” direcionadas às agências de saúde que apregoam imunização coletiva. Resultado: surtos, como o de coqueluche que, no ano passado, atingiu mais de 24 mil norte-americanos vulneráveis.
“Felizmente esse modismo tem pouco impacto por aqui, e se resume a segmentos populacionais difíceis de ser atingidos pelas campanhas”, opina Gabriel Oselka, presidente da Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. “Seguramente, a cobertura um pouco menor nas classes A e B se dá por colegas que, movidos quase sempre por questões filosóficas, não prescrevem imunizantes“. Aqui se podem incluir visões filosóficas (e mesmo científicas) de alguns representantes da homeopatia e da antroposofia – que não refletem necessariamente a posição oficial de suas principais entidades profissionais, que reconhecem os benefícios concretos das vacinas, mas, eventualmente, recomendam contraindicar a imunização a um determinado paciente, em um momento particular.
Problemas éticos e legais
Entre os brasileiros, atender ao Calendário Básico de Vacinação, do Programa Nacional de Imunizações (PNI), é obrigatório por lei, constando do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É óbvio que o médico também deve respeitar a norma, já que o artigo14 do Código de Ética Médica o proíbe de “praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País”.
Em termos de saúde pública, é preciso considerar o uso generalizado da imunização para a efetividade final. Pensar no coletivo adquire importância ética essencial. Para Barbosa, “crianças bem-nutridas, que vivem em condomínios de luxo, podem até desenvolver, por exemplo, uma forma mais leve de sarampo. O problema é a possibilidade de transmitir aos filhos dos porteiros e das faxineiras, e a outros com doenças congênitas”.
Processar ou não. Eis a questão.
O bioeticista Arthur Caplan, da Universidade de Nova Iorque, líder do grupo que defendeu a punição a pais que não vacinam, em artigo publicado no Journal of Law, Medicine & Ethics, cogita resolver a questão de maneira radical: “Você pode escolher vacinar ou não seu filho. Só que se essa decisão causar danos ou provocar a morte de alguém, você pode ser processado”.
Para ele, ao requerer seu direito de não vacinar, os pais deveriam ser obrigados a explicar por escrito seus motivos, assumindo a responsabilidade por qualquer dano que recair sobre alguém. Inclusive o de pagar do próprio bolso o custo do tratamento de doença prevenível com vacina.
Texto originalmente publicado no Jornal do Cremesp nº 316/julho de 2014
Tags: vacina, bioética, calendário de vacinação, crianças, saúde pública.
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